
Quase quatro anos após o início da guerra na Ucrânia, a Europa conseguiu o que parecia improvável: reduzir de forma drástica sua dependência do petróleo e do gás russos sem mergulhar em uma recessão energética. A façanha, impulsionada pelo plano REPowerEU (estratégia adotada em maio de 2022 para economizar energia, aumentar a produção renovável e diversificar fornecedores) e sustentada por uma rede cada vez mais diversificada de fornecedores, marca uma inflexão histórica na matriz energética do continente. Mas o desafio agora é consolidar essa autonomia em meio a um cenário de tensões geopolíticas, custos elevados e desigualdade persistente entre Estados-membros.
De acordo com dados do Statista, entre o primeiro trimestre de 2021 e o segundo trimestre de 2025, a União Europeia reduziu em mais de 90% as importações de petróleo russo, fazendo com que a participação do país caísse de 29% para menos de 2% do total das importações extra-UE. No caso do gás natural, a queda também foi expressiva: de 39% para 13% no mesmo período. O bloco reduziu principalmente o gás transportado por gasoduto – que recuou 52% – e substituiu parte do volume por gás natural liquefeito (GNL), cuja importação total mais do que quadruplicou desde 2021.
O avanço europeu só foi possível graças à rápida ampliação das compras de GNL de países como Estados Unidos, Catar e Noruega. As importações americanas, em especial, tornaram-se um pilar central da segurança energética da Europa, um movimento que também reposiciona Washington como ator dominante no fornecimento global de gás e, inevitavelmente, como origem de nova vulnerabilidade estratégica.
O paradoxo da transição inacabada
Esse redesenho da matriz energética europeia reflete não apenas uma necessidade técnica, mas uma decisão estratégica: reduzir a vulnerabilidade a um fornecedor que utilizou o gás como instrumento político. A Rússia, que até 2021 respondia por mais de um terço das importações de gás do bloco, viu seu poder de barganha desmoronar. Ainda assim, a ruptura está longe de ser completa.
Dados recentes da Reuters revelam que sete países da UE – França, Holanda, Bélgica, Croácia, Romênia, Portugal e Hungria – aumentaram as importações de energia russa no início de 2025 em comparação com o ano anterior. Na França, as compras subiram 40%, para 2,2 bilhões de euros; na Holanda, o aumento foi de 72%, atingindo 498 milhões de euros. Nos primeiros oito meses de 2025, o bloco importou mais de 11 bilhões de euros em recursos energéticos russos.
O fenômeno expõe a fragilidade da narrativa de “descolamento”. Embora a participação percentual russa tenha caído drasticamente, o fluxo absoluto de capital para Moscou permanece robusto. A ironia é ainda mais evidente no caso do GNL: enquanto o gás russo por gasoduto foi severamente reduzido, o GNL russo continua chegando aos terminais europeus. O valor dessas importações quase triplicou desde 2021, ainda que sua participação relativa tenha diminuído devido à explosão das importações totais de GNL.
A resistência do Leste e a política dos custos
Nem todos os Estados-membros embarcaram com o mesmo ritmo nessa transição. Hungria e Eslováquia, altamente dependentes do petróleo russo, continuam entre os maiores compradores remanescentes. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, tem reiterado que o abandono total do fornecimento russo traria custos “inaceitáveis” à economia doméstica. Suas objeções não são apenas econômicas: Orbán mantém relações políticas próximas com o Kremlin, transformando a questão energética em um teste de coesão europeia.
A divergência expõe um dilema latente: enquanto parte da Europa busca acelerar a descarbonização e o investimento em renováveis, outros países ainda veem o gás russo como um mal necessário para manter energia acessível e competitividade industrial. A memória recente da crise do gás de 2022, quando os preços chegaram a multiplicar-se por dez, forçando indústrias a fechar e disparando as contas de famílias, ainda assombra governos e consumidores, especialmente em economias menores ou mais expostas a choques de preços.
Em resposta à persistência dessas importações, a Comissão Europeia adotou, em 17 de junho de 2025, uma proposta legislativa para eliminar gradualmente todas as importações de gás e petróleo russos até o final de 2027. A proposta, agora em tramitação no Parlamento Europeu e no Conselho da UE, marca uma tentativa de transformar a meta política em obrigação legal, mas também expõe as divisões internas que dificultam sua implementação.
Autonomia energética e segurança continental
A guerra evidenciou que energia é também uma questão de segurança nacional. O risco de sabotagens, ciberataques e interferências em gasodutos ou redes elétricas ampliou a percepção de vulnerabilidade. Nesse sentido, o REPowerEU tornou-se não apenas um programa de transição verde, mas uma política de defesa continental.
Entre agosto de 2022 e janeiro de 2025, a UE conseguiu reduzir sua demanda de gás em 17%, equivalente a 70 bilhões de metros cúbicos por ano, uma conquista notável em termos de eficiência energética e gestão de demanda. A aceleração na instalação de capacidade solar, que deve ultrapassar 320 gigawatts até o final de 2025 rumo à meta de 600 gigawatts em 2030, representa outro avanço estrutural.
A nova fase, porém, exigirá coordenação e solidariedade entre os Estados-membros, uma condição nem sempre presente. Países como Alemanha e Países Baixos, que conseguiram diversificar com rapidez, precisarão sustentar financeiramente e tecnicamente os vizinhos com menor capacidade de adaptação, sob pena de reabrir fissuras no projeto europeu.
A encruzilhada europeia
O descolamento parcial da energia russa representa uma vitória política improvisada, mas longe de ser uma solução estrutural. A nova dependência do GNL americano apenas troca uma vulnerabilidade geopolítica por outra, enquanto a transição para renováveis avança de forma fragmentada e desigual. As importações que continuam fluindo para alguns Estados-membros, inclusive com aumentos em 2025, revelam que a retórica de autonomia ainda não se traduziu em política uniforme.
A Europa comprou tempo, não autonomia. Se 2027 marcará a ruptura definitiva com Moscou ou apenas o início de um novo capítulo de dependência externa é uma questão que os próximos meses ajudarão a responder. No fim, o que está em jogo é mais do que o equilíbrio energético: trata-se da capacidade da Europa de afirmar sua autonomia estratégica num mundo cada vez mais fragmentado.