Na Groenlândia, o número de abortos supera o de nascimentos

Mais da metade das mulheres que engravidam estão interrompendo suas gestações na ilha, que integra o reino da Dinamarca

22 de maio de 2019 6 minutos
Europeanway

Nos últimos anos, a Groenlândia tem registrado uma estatística que preocupa as autoridades: desde 2013, ocorrem na ilha cerca de 700 nascimentos e 800 abortos por ano, segundo os dados do governo. O país enfrenta problemas com violência (um terço dos adultos foi exposto a algum tipo de abuso na infância) e alcoolismo.

A Groenlândia – um território autônomo, mas que integra o reino da Dinamarca – é a maior ilha do mundo, mas tem uma população pequena, de apenas 55.992 pessoas, de acordo com a Statistics Greenland. Lá, mais da metade das mulheres que engravidam estão interrompendo suas gestações, o que corresponde a uma taxa de cerca de 30 abortos por mil mulheres. Para efeito de comparação, a Dinamarca tem uma taxa de 12 abortos para cada mil mulheres, segundo os dados oficiais.

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Dificuldades econômicas, condições precárias de moradia e educação ruim explicam as altas taxas, mas há outros fatores que devem ser analisados em um país em que a contracepção é gratuita e de fácil acesso. Em muitas nações, mesmo onde o aborto é legal e gratuito, há um estigma em torno da escolha. Na Groenlândia, em contrapartida, algumas mulheres não demonstram preocupação com a questão, já que lá não se encara uma gravidez indesejada como algo de que se deva envergonhar.

"Estudantes em Nuuk (capital da Groenlândia) podem ir à clínica de saúde sexual às quartas-feiras, que chamam de 'dia do aborto'", disse à BBC Turi Hermannsdottir, pesquisadora que estuda o assunto na Universidade de Roskilde, na Dinamarca. "Na Groenlândia, o debate sobre o aborto não parece estar sujeito a tabus ou condenação moral, nem o sexo antes do casamento ou gravidez não planejada."

Embora a contracepção seja gratuita, isso não significa que as pessoas necessariamente recorram a ela. "Cerca de 50% das mulheres, segundo minha pesquisa, sabiam sobre contracepção, mas mais de 85% delas não usavam ou usavam de forma incorreta", afirmou à BBC Stine Brenoe, enfermeira de ginecologia que trabalha na Groenlândia e pesquisa o aborto há muitos anos. O consumo de álcool também está relacionado à gravidez indesejada, segundo ela. "Tanto homens quanto mulheres podem se esquecer de usar contraceptivos se estiverem alcoolizados", disse.

Famílias na Groenlândia adiam ou evitam falar sobre saúde sexual, já que isso é considerado estranho e difícil, segundo um estudo do International Journal of Circumpolar Health. Hermannsdottir, em sua pesquisa, aponta três razões pelas quais as pessoas não estão usando contraceptivos na ilha. "Mulheres que querem filhos; mulheres com vidas turbulentas e afetadas pela violência e álcool que podem esquecer de tomar a pílula anticoncepcional; e, por último, casos em que o parceiro se recusa a usar um preservativo."

Se a gravidez for resultado de um estupro, essa pode ser a razão que leva algumas mulheres a decidirem abortar. Outro motivo também pode ser o de ela preferir evitar criar uma criança em um lar problemático. "O aborto pode ser melhor do que crianças negligenciadas e indesejadas", disse Lars Mosgaard, médico em uma pequena cidade no sul da Groenlândia.

A violência é um problema recorrente na Groenlândia. Um em cada dez jovens estudantes relatou ter visto a mãe ter sofrido alguma violência, de acordo com o Centro Nórdico de Assistência Social e Assuntos Sociais. Além de testemunhar a violência, muitas vezes as crianças também são vítimas. "Um terço dos adultos da Groenlândia foi exposto a alguma forma de abuso quando criança", disse à Corporação Dinamarquesa de Radiodifusão Ditte Solbeck, que administra o plano do governo para combater abusos sexuais.

Além das altas taxas de aborto, a Groenlândia também tem uma grande taxa de suicídio: 83 mortes por 100 mil pessoas a cada ano, de acordo com dados do International Journal of Circumpolar Health. Os jovens representam mais da metade dos suicídios.
"Na maioria dos casos, aqueles que cresceram em ambiente de abuso e violência são mais propensos ao suicídio", diz Lars Pedersen, um psicólogo que passou vários anos trabalhando na Groenlândia.

Em 1953, a Groenlândia se tornou parte do reino da Dinamarca. O dinamarquês foi promovido a língua oficial – a língua local, mais usada, é o groenlandês -, e a sociedade e a economia mudaram de forma drástica. Inuits, os habitantes nativos da Groenlândia, que são 88% da população, tiveram de encontrar maneiras de se adaptar a uma nova sociedade, mantendo sua herança cultural.

Para diminuir a quantidade de abortos, alguns sugerem que a Groenlândia deveria começar a cobrar para realizá-los. Outros, ao contrário, explicam que a quantidade de abortos não tem a ver com a gratuidade do procedimento. Na Dinamarca – onde também é acessível abortar –, os números de aborto são muito mais baixos (12 por mil mulheres) quando comparados à Groenlândia (30 abortos por mil mulheres).

A doutora e professora norueguesa Johanne Sundby, que trabalhou na Groenlândia com mulheres e crianças se recuperando de violência e abuso, defende que os pacientes não deveriam pagar pelo procedimento: "Sou totalmente contra. Isso abriria um mercado clandestino, com abortos baratos e perigosos."

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