
Em um desdobramento surpreendente do escândalo Dieselgate, cinco das maiores montadoras do mundo – Mercedes-Benz, Ford, Renault, Nissan e Peugeot/Citroën (Stellantis) – enfrentam diante do Tribunal Superior inglês o que já é chamado de o maior processo coletivo da história do sistema judiciário da Inglaterra e País de Gales. O cerne da acusação: o uso de “defeat devices”, dispositivos de software que teriam permitido manipular testes de emissões de óxidos de nitrogênio (NOₓ) em condições laboratoriais, enquanto os níveis reais nas ruas seriam muito mais elevados.
O processo congrega até 1,6 milhão de consumidores como claimants (reclamantes) e concentra-se, numa primeira fase, em mais de 220 mil proprietários diretamente representados e cerca de 20 modelos diesel comercializados principalmente entre 2009 e 2017.
Os advogados dos consumidores estimam que as indenizações poderiam ultrapassar £6 bilhões (aproximadamente R$ 42 bilhões), com algumas projeções chegando a £8 bilhões, valores que representariam uma das maiores compensações da história automotiva europeia. O julgamento de mérito sobre a culpa, iniciado recentemente, deve se estender até dezembro de 2025, com argumentos finais previstos para março de 2026. Uma sentença sobre responsabilidade é esperada para meados de 2026, e uma segunda fase sobre valores de compensação pode ocorrer no outono do mesmo ano.
Além disso, embora o processo esteja formatado em torno de cinco montadoras como rés principais, o veredicto potencialmente vinculativo pode atingir outros fabricantes cujos veículos compartilhem tecnologias ou práticas semelhantes, como BMW, Volkswagen, Hyundai, Kia, entre outros.
Para o setor automobilístico, esse caso não é meramente local. Representa uma zona de risco legal, reputacional e regulatório que pode rever o pacto tácito entre fabricantes e reguladores ambientais.
A sombra da Volkswagen
O nome “Dieselgate” continua sendo sombra constante. Em 2015, a Volkswagen admitiu ter instalado software para mascarar emissões em milhões de veículos em todo o mundo, o que resultou em multas, recalls e acordos globais que ultrapassaram os € 30 bilhões. No Reino Unido, a VW firmou um acordo de £193 milhões (cerca de R$ 1,35 bilhão) com aproximadamente 91 mil motoristas em 2022.
Mas a diferença decisiva agora é que outras montadoras, historicamente menos visadas, estão sendo trazidas à arena. O desafio é provar que as práticas alegadas não foram meros reflexos do legado da VW, mas decisões deliberadas e sistemáticas.
Impactos à saúde, regulação e legitimidade
O processo reacende um debate que transcende mercados e balanços: os efeitos da poluição automotiva na saúde pública. Um estudo recente estimou que os veículos com “defeat devices” contribuíram para cerca de 16 mil mortes prematuras e 30 mil casos de asma infantil no Reino Unido. Outros estudos e entidades ambientais responsabilizam esse tipo de emissões por perdas econômicas colossais e redução da qualidade de vida em inúmeras cidades europeias.
Do ponto de vista regulatório, o Reino Unido possui uma particularidade: apenas recentemente (via Environment Act 2021) lhe foram concedidos poderes para obrigar montadoras a recolher veículos que violem normas ambientais, mas esses poderes ainda não foram amplamente exercidos.
Em julho de 2025, o Tribunal Superior inglês ordenou que as montadoras revelassem centenas de documentos confidenciais, incluindo resultados de testes, documentos de design e comunicações com reguladores. Isso pode ser considerado uma vitória processual significativa para os reclamantes que demonstra a seriedade com que o caso está sendo tratado.
Assim, caso o tribunal reconheça a existência de dispositivos ilegais, pode emergir uma pressão decisiva sobre o governo para impor recall e sanções, algo que até agora vinha sendo tratado com moderação.
Também cresce a desconfiança pública: segundo uma pesquisa da YouGov/ClientEarth, 63% dos britânicos afirmam não confiar nas montadoras para relatar com transparência os impactos ambientais de seus veículos.
Naturalmente, todas as empresas envolvidas negam as acusações. A defesa central gira em torno de três eixos:
- Justificativas técnicas e operacionais: as montadoras argumentam que os sistemas de controle de emissões operam em condições variáveis (temperatura, carga do motor etc.), o que pode justificar diferenças entre dados de laboratório e medições em uso real.
- Distinção em relação à VW: muitas defesas afirmam que não há correlação automática entre os sistemas supostamente usados por essas empresas e aqueles revelados no escândalo original, e que o risco de “culpa por associação” é um excesso.
- Contestação processual: desde o início, advogados das montadoras questionam a solidez técnica das amostras usadas como prova e argumentam desequilíbrios no orçamento de custas do litígio.
Embora o centro do processo esteja no Reino Unido, seu efeito pode reverberar em toda a Europa – e potencialmente no Brasil, que importa veículos e tecnologia dessas montadoras. Se os reclamantes vencerem, decisões judiciais em outros países poderão apontar para indenizações, recalls obrigatórios e reavaliação normativa dos padrões de emissões.
Além disso, o custo reputacional para marcas tradicionais será elevado: no tabuleiro das transições para veículos elétricos e cumprimento climático, confiar que os fabricantes respeitam os limites ambientais é essencial. Para a indústria automotiva europeia, que mantém forte presença no mercado brasileiro, a questão é particularmente delicada: a confiança do consumidor é um ativo que leva décadas para construir e pode ser destruído em meses.
Por fim, para o investidor e para o observador regulatório, esse momento lembra que acordos pontuais – como o da VW – não encerraram a era das disputas ambientais. Eles apenas definiram novas arenas de combate. E agora, o palco principal é Londres.





