Gigantes europeus se unem para desafiar o império espacial de Musk

28 de outubro de 2025 8 minutos
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Quando três rivais históricos decidem sentar-se à mesma mesa, geralmente é porque o perigo à porta é maior do que as disputas internas. Na última semana, esse princípio ganhou forma concreta no setor aeroespacial europeu: Airbus, Thales e Leonardo – empresas que durante décadas competiram ferozmente pelo mercado de satélites de alta complexidade – anunciaram a criação de uma joint venture que promete redefinir o tabuleiro global da infraestrutura espacial. Não se trata apenas de uma fusão empresarial. Trata-se de uma resposta estratégica à dependência tecnológica.

O acordo, batizado internamente como “Projeto Bromo”, representa a mais significativa consolidação industrial no setor espacial europeu desde a criação da fabricante de mísseis MBDA, em 2001. Com sede em Toulouse, no coração da indústria aeroespacial francesa, a nova empresa reunirá cerca de 25 mil profissionais e projetava receitas de € 6,5 bilhões (cerca de US$ 7,5 bilhões), com base nos números de 2024. A divisão acionária reflete um equilíbrio político e estratégico: a Airbus deterá 35% do capital, enquanto Leonardo e Thales ficarão com 32,5% cada.

O timing do anúncio não poderia ser mais revelador. Apenas quatro dias antes, a SpaceX de Elon Musk celebrava um marco que deixou evidente o abismo entre a velocidade americana e a letargia europeia: a Starlink ultrapassou a marca de 10 mil satélites lançados ao espaço. Destes, cerca de 8.600 permanecem operacionais, formando uma rede que não apenas dominou o mercado de internet via satélite, mas se tornou peça-chave em operações militares e comunicações governamentais em zonas de conflito, incluindo a Ucrânia.

A diferença é brutal. Enquanto a Starlink lança dezenas de satélites por mês através de foguetes Falcon 9 reutilizáveis, produzindo em massa equipamentos padronizados para órbitas baixas, as empresas europeias permaneceram focadas no nicho tradicional de satélites geoestacionários – complexos, caros e customizados. O modelo de negócio que funcionou por décadas entrou em colapso diante da revolução liderada pela SpaceX.

“Durante anos, competimos entre nós mesmos enquanto o mundo mudava lá fora”, admitiu, entre linhas, Alain Fauré, responsável pelos sistemas espaciais da Airbus Defence and Space, em declarações anteriores durante o salão aeronáutico de Paris. A fragmentação europeia – com múltiplos players disputando contratos em mercados nacionais – criou uma indústria potente tecnicamente, mas vulnerável estrategicamente.

Soberania digital em jogo

O discurso oficial dos governos francês e italiano deixa claro que a fusão transcende considerações puramente comerciais. Roland Lescure, ministro das Finanças da França, classificou o acordo como essencial para “fortalecer a soberania europeia em um contexto de intensa competição global”. Adolfo Urso, ministro da Indústria da Itália, ecoou o argumento, defendendo o surgimento de “campeões europeus” capazes de competir em escala internacional.

A questão é simples e urgente: a Europa não pode depender de redes estrangeiras – especialmente americanas – para suas comunicações críticas. A imprevisibilidade política de Washington, amplificada pela relação cada vez mais estreita entre Elon Musk e o governo Trump, acendeu todos os alertas em Bruxelas. Se o bilionário sul-africano pode, com um tuíte, influenciar políticas energéticas ou decidir cortar o fornecimento de serviços em regiões específicas, como garantir que interesses europeus de segurança e defesa não fiquem reféns de decisões tomadas em Hawthorne, Califórnia?

A resposta europeia passa pelo programa IRIS² (Infrastructure for Resilience, Interconnectivity and Security by Satellite), uma constelação de cerca de 290 satélites multi-órbita financiada pela União Europeia com investimento total de € 10,6 bilhões. O projeto prevê o início das operações até 2030, oferecendo conectividade governamental segura e, subsidiariamente, serviços comerciais de banda larga. A Thales já anunciou a conquista de um contrato inicial de € 100 milhões para desenvolvimento de engenharia do IRIS², acordo que permitiu à empresa suspender cortes de empregos planejados em sua divisão espacial.

Pascal Bouchiat, diretor financeiro da Thales, celebrou o contrato mas manteve os pés no chão: “Este primeiro contrato de desenvolvimento não elimina os desafios que a indústria europeia, em particular, está enfrentando”. A frase traduz bem o momento: há otimismo, mas ninguém se ilude sobre a magnitude da tarefa.

Os números contam uma história de dificuldades. A Airbus registrou US$ 1,5 bilhão em baixas contábeis em 2023 devido a contratos não lucrativos e anunciou o corte de 2 mil postos de trabalho em sua divisão de defesa e espaço. A Thales Alenia Space, joint venture existente entre Thales (67%) e Leonardo (33%), eliminou mais de mil empregos no ano passado. O mercado de grandes satélites comerciais geoestacionários – o pão nosso de cada dia dessas empresas – encolheu drasticamente, pressionado pela migração para constelações LEO (órbita baixa) mais baratas e versáteis.

A nova joint venture promete gerar sinergias anuais “na casa dos três dígitos de milhões de euros” a partir do quinto ano de operação – traduzindo: economias entre € 100 milhões e € 999 milhões por ano através da eliminação de duplicidades, integração de cadeias de fornecimento e racionalização de portfólios tecnológicos. A aprovação regulatória pode levar até dois anos, mas os três grupos já iniciaram planos de integração de equipes e tecnologias.

O mercado reagiu com cautela otimista. As ações da Leonardo subiram cerca de 2% no pregão seguinte ao anúncio, enquanto Airbus e Thales registraram alta de aproximadamente 1%. Analistas do banco italiano Equita avaliaram a consolidação como “positiva, pois cria um líder europeu capaz de competir globalmente e melhora a lucratividade de um negócio que tem enfrentado dificuldades”.

A corrida tecnológica

Além da escala, a fusão busca acelerar o desenvolvimento de tecnologias consideradas críticas para a próxima geração de infraestrutura espacial: satélites reconfiguráveis em órbita (capazes de alterar suas funcionalidades após lançamento), inteligência artificial embarcada para processamento de dados em tempo real, e comunicações quânticas – área onde europeus e chineses disputam a vanguarda global.

A Agência Espacial Europeia (ESA) já trabalha em projetos complementares, como o HydRON (High-throughput Digital and Optical Network), desenvolvido com a Thales, que utilizará transmissão laser entre satélites para entregar velocidades de até um terabit por segundo. A expectativa é que essa tecnologia seja integrada às futuras gerações de satélites da nova joint venture.

Josef Aschbacher, diretor-geral da ESA, manifestou apoio à consolidação industrial. “Em um mundo geopolítico cada vez mais complexo, é essencial garantir comunicações governamentais resilientes, seguras e rápidas”, afirmou. Mas Aschbacher também reconheceu que a concentração do mercado europeu em um único player dominante alterará a dinâmica de competição e exigirá ajustes nas políticas de procurement da agência.

O desafio dos números

Mesmo com a fusão, o abismo em relação à Starlink permanece vertiginoso. A constelação de Musk adiciona dezenas de satélites por semana e já possui autorização para operar até 12 mil unidades, com planos de expansão para 30 mil. A IRIS², por sua vez, prevê cerca de 290 satélites operacionais até 2030 – cinco anos à frente. A diferença de escala é brutal e reflete ritmos de desenvolvimento radicalmente distintos.

Há, porém, nuances importantes. Os satélites europeus serão multi-órbita (combinando órbitas baixas e médias) e terão capacidades mais robustas para aplicações governamentais e de defesa. Enquanto a Starlink prioriza volume e velocidade de deployment para conquistar mercado comercial, o foco europeu está em resiliência, segurança criptográfica e independência estratégica. São filosofias diferentes para necessidades diferentes, embora a Europa também não esconda a ambição de capturar fatias do mercado comercial global, especialmente em regiões como América Latina, África e Ásia-Pacífico.

O Brasil, aliás, foi mencionado explicitamente como potencial parceiro. Pedro Romero Fernandez, policy officer da Comissão Europeia, afirmou durante o Congresso Latino-americano de Satélites, no Rio de Janeiro, que países da América do Sul poderiam utilizar capacidade ociosa da IRIS² para aplicações governamentais. “Haverá espaço disponível em outras regiões. O Brasil é muito importante em temas geoestratégicos”, disse.

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