
O setor francês de águas minerais, avaliado em bilhões de euros e sustentado por um prestígio cuidadosamente construído ao longo de décadas, enfrenta uma crise de credibilidade sem precedentes. No centro das atenções está a Perrier, marca centenária considerada um ícone global de sofisticação e símbolo de “pureza natural”. Uma série de revelações do Le Monde e da Radio France mostrou que a empresa, pertencente à Nestlé Waters desde os anos 1990, utilizou sistemas de filtragem que contrariam a legislação europeia. episódio ameaça não apenas sua própria reputação, mas a credibilidade de um setor estimado em €2,7 bilhões e responsável por mais de 41 000 empregos na França.
As práticas incluíam microfiltração, carvão ativado e radiação ultravioleta, técnicas normalmente aplicadas para eliminar contaminações bacterianas ou químicas. Embora não haja indícios de riscos à saúde pública, o problema reside no fato de que a classificação de “água mineral natural”, protegida pela União Europeia, pressupõe que a água engarrafada seja inalterada entre a fonte subterrânea e a garrafa. Essa distinção, além de permitir um preço muito mais elevado do que a água da torneira, sustentou a imagem das grandes marcas francesas no exterior, associadas a encostas alpinas, pureza mineral e prestígio cultural.
A crise ganhou contornos políticos quando um relatório do Senado francês revelou que o governo tinha conhecimento das práticas da Nestlé desde 2022, mas não atuou de forma transparente para corrigir a irregularidade. As acusações de conluio entre autoridades e executivos acirraram o debate sobre governança e regulação em um setor que emprega mais de 40 mil pessoas no país. Em julho, escritórios da Nestlé foram alvo de operações de busca por autoridades francesas, no contexto de uma investigação judicial aberta no início do ano.
A empresa afirmou ter retirado filtros ilegais de 0,2 mícron e substituído por outros de 0,45 mícron, mas continua sob pressão para provar que suas fontes produzem água compatível com o rótulo de “natural”. A questão vai além da técnica de filtragem: especialistas apontam que a recorrência de secas e episódios de contaminação nas regiões produtoras, como Vergèze, no sul da França, fragilizou os aquíferos e tornou mais difícil garantir a qualidade sem algum tipo de tratamento. Para a hidróloga Emma Haziza, o episódio é um sintoma de um modelo de exploração que funcionou durante décadas, mas se mostra insustentável diante das mudanças climáticas.
Essa não é a primeira vez que a reputação da Perrier é colocada em xeque. Em 1990, a marca enfrentou um recall global depois da descoberta de benzena em algumas garrafas. Hoje, o desafio é ainda mais profundo, pois envolve não apenas
um erro pontual, mas a sustentação de toda uma narrativa de mercado que pode não resistir às pressões ambientais e políticas.
A consequência imediata foi uma queda de vendas estimada em quase um quarto no mercado francês, ao mesmo tempo em que cresce a desconfiança internacional. A longo prazo, o episódio pode redefinir não apenas o futuro da Perrier, mas também o marco regulatório europeu sobre águas minerais. O dilema é claro: ou as marcas encontram meios de garantir autenticidade e segurança sem comprometer a definição legal de “natural”, ou precisarão rever sua identidade diante de consumidores cada vez mais atentos ao que de fato consomem.