
Pergunto a amigos europeus o quanto as tensões geopolíticas no continente estão concretamente impactando o dia a dia e as percepções acerca de uma eventual escalada capaz de ampliar o conflito na Ucrânia para territórios vizinhos.
Uns mais, outros menos, todos de alguma maneira consideram que o cenário atual merece atenção, reflexão e até uma camada extra de prevenção. Enquadra-se nesse último estágio a decisão de comprar (e armazenar) determinada quantidade adicional de produtos de primeira necessidade para eventuais situações emergenciais.
Just in case.
Na verdade, se preocupações já rondavam os céus europeus por conta da guerra de Moscou contra Kiev, novas nuvens de incertezas geradas em Washington trouxeram abalos na parceria transatlântica que durava desde o fim da Segunda Guerra nas dimensões comercial, política e militar.
É nesse ambiente fervilhante, que inclui o anúncio pelo governo dos Estados Unidos de tarifas de 30% sobre produtos europeus exportados para o país (buscando naturalmente uma abertura de negociações que acabou acontecendo) que Bruxelas acaba de fazer mais um movimento para encarar a realidade. Trata-se da decisão de construir, rapidamente, um novo ecossistema destinado a garantir autonomia e resiliência para o continente.
A Comissão Europeia sinaliza com uma estratégia inédita de estocagem de bens essenciais, como alimentos, água potável, combustíveis, medicamentos e equipamentos médicos — para garantir que o bloco esteja preparado para cenários de calamidade, desde crises sanitárias até conflitos armados.
A proposta inclui a formação de uma rede pan-europeia de estocagem, com compra coordenada de insumos estratégicos e o desenvolvimento de mecanismos para identificar vulnerabilidades em tempo real. Entre os itens listados: drones, equipamentos de purificação de água, geradores de emergência, pontes móveis e dispositivos para reparo de cabos submarinos. Um aceno claro à guerra híbrida e aos riscos à infraestrutura crítica.
A estratégia surge em meio a crescentes alertas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a aliança militar do Ocidente: segundo seu secretário-geral Jens Stoltenberg a Rússia pode estar pronta para confrontar o Ocidente militarmente nos próximos cinco anos. Por isso, seria necessário preparar o continente para um eventual enfrentamento.
Países como Suécia, Alemanha, Finlândia e Estônia (os dois últimos fazem fronteira com a Rússia) já exercitam claramente um processo preventivo. Berlim elaborou um plano militar para mobilizar até 800 mil soldados da OTAN, enquanto Helsinque ergue uma cerca na fronteira com a Rússia e reativa seus bunkers da Guerra Fria. Enquanto isso Estocolmo reedita sua cartilha “Se a Crise ou a Guerra Chegar”, recomendando que cada cidadão tenha estoque para sobreviver ao menos três dias por conta própria, diretriz semelhante já sugerida pela própria UE em março.
O olhar sobre o risco militar está evidente, mas o novo plano da Comissão Europeia contempla também a resiliência civil e sanitária. Um novo sistema único será criado para apoiar empresas no desenvolvimento de vacinas e medicamentos terapêuticos. A HERA, a autoridade europeia de resposta a emergências de saúde, terá seu orçamento duplicado até 2027, chegando a €200 milhões.
Mais: o bloco pretende criar um sistema de monitoramento de esgoto capaz de prever surtos infecciosos, um tipo de radar epidemiológico que pode oferecer semanas de vantagem frente a uma nova crise sanitária.