
Enquanto o Vale do Silício (centro da indústria tech americana) e Shenzhen (polo tecnológico chinês) disputam a liderança global em inteligência artificial, a União Europeia prepara seu contra-ataque. A estratégia Apply AI, apresentada pela Comissão Europeia em colaboração com o Centro Comum de Pesquisa (JRC), representa mais que um plano de modernização tecnológica: é uma declaração de intenções sobre qual papel o continente pretende ocupar na reconfiguração digital do mundo.
A proposta chega num momento delicado. Enquanto os Estados Unidos dominam o desenvolvimento de modelos generativos através de empresas como OpenAI e Google, e a China avança rapidamente em aplicações industriais com apoio estatal massivo, a Europa corre o risco de se tornar mera consumidora de tecnologias desenvolvidas além de suas fronteiras. Apply AI é a tentativa de reverter essa dinâmica.
Dois pilares, uma ambição
A estratégia se estrutura sobre objetivos aparentemente simples, mas de execução complexa. Primeiro, democratizar o acesso à IA para pequenas e médias empresas, a espinha dorsal da economia europeia, que representa cerca de 99% das companhias do bloco. Segundo, modernizar serviços públicos através da inteligência artificial, transformando a relação entre Estado e cidadão.
O que diferencia a abordagem europeia é a ênfase simultânea em competitividade e valores. Enquanto outras potências correm atrás de avanços técnicos, Bruxelas insiste que inovação deve vir acompanhada de ética, transparência e respeito à privacidade: uma aposta em que a confiança cidadã pode se tornar vantagem competitiva.
O estudo do Centro Comum de Pesquisa (JRC, na sigla em inglês) que fundamentou a estratégia identificou profunda desconexão entre demanda e oferta: o mercado procura desesperadamente engenheiros de IA, cientistas de dados e especialistas em machine learning, mas a formação permanece concentrada em áreas tradicionais como robótica e automação, com tímida cobertura de IA generativa, justamente a fronteira tecnológica do momento.
Mais revelador ainda é o déficit de capacitação interdisciplinar. Juristas, administradores públicos e profissionais de ciências sociais permanecem à margem dos programas de formação em IA, criando um abismo entre quem desenvolve a tecnologia e quem precisa regulá-la, implementá-la ou avaliar seus impactos sociais. É como tentar construir uma ponte com engenheiros que não conversam com arquitetos.
Para endereçar essas lacunas, a Apply AI pretende transformar os European Digital Innovation Hubs (EDIHs), uma rede de centros regionais de apoio tecnológico, em polos especializados em inteligência artificial. A ideia é que PMEs possam testar soluções, receber consultoria técnica e navegar o labirinto regulatório europeu sem precisar montar departamentos especializados internamente.
Paralelamente, a estratégia reconhece que sem infraestrutura adequada não há inovação que se sustente. Computação de alto desempenho, redes robustas de dados, acesso facilitado à nuvem e sistemas interoperáveis deixaram de ser luxo para se tornarem necessidade básica. A questão é se os investimentos virão na velocidade e escala necessárias.
A aplicação de IA em governos ganha tratamento estratégico. Não se trata apenas de ganhos de eficiência, embora estes sejam bem-vindos, mas de construir legitimidade social para a tecnologia. Se cidadãos europeus perceberem melhorias concretas em saúde, educação, transportes e serviços públicos, a aceitação da IA tende a crescer organicamente.
O JRC recomenda que administrações públicas cultivem “cultura de inovação” interna, internalizem expertise técnica e adotem liderança ativa na implementação. O observatório Public Sector Tech Watch, mantido pelo próprio centro de pesquisa, já monitora casos de uso e compartilha boas práticas entre os estados-membros: um embrião do que poderia se tornar padrão continental.
Os fantasmas no caminho
A estratégia não navega em águas tranquilas. A desigualdade entre estados-membros representa risco concreto: países com maior capacidade tecnológica e recursos financeiros podem avançar rapidamente, enquanto regiões periféricas ficam para trás, aprofundando assimetrias já existentes no bloco. Mecanismos de coesão serão essenciais, mas historicamente difíceis de implementar.
A governança ética da IA em setores críticos levanta preocupações legítimas. Vieses algorítmicos em sistemas de saúde, justiça ou segurança pública podem perpetuar ou amplificar discriminações. A Europa insiste em regulação robusta e transparência, mas o equilíbrio entre inovação e controle permanece tenso.
E há o desafio temporal. Enquanto a UE debate, estrutura hubs e forma profissionais, Estados Unidos e China aceleram. A janela de oportunidade para a Europa estabelecer padrões próprios e conquistar relevância global não permanecerá aberta indefinidamente.
Resistências institucionais também não podem ser subestimadas. Administrações públicas europeias carregam camadas de burocracia sedimentadas por décadas. Transformar culturas organizacionais avessas ao risco em ambientes de inovação exigirá mais que intenções: demandará liderança política consistente e investimento em capacitação interna.
No fundo, Apply AI é uma aposta sobre identidade. A Europa pode não ter os gigantes tecnológicos do Vale do Silício nem o dirigismo estatal chinês, mas possui algo potencialmente valioso: a possibilidade de construir um modelo alternativo de desenvolvimento de IA, centrado em confiança, valores democráticos e benefício social.
Se bem-sucedida, a estratégia pode reposicionar o continente como definidor de padrões globais, não necessariamente os mais rápidos ou agressivos, mas os mais sustentáveis e socialmente aceitos. Para pequenas e médias empresas europeias, representa chance concreta de competir globalmente com ferramentas de ponta. Para cidadãos, a promessa de serviços públicos melhores e mais responsivos.