Vem aí o EuroStack: a Europa pode voltar a ser competitiva em inovação tecnológica?

Danilo Valeta, Diretor na Imagem Corporativa 17 de outubro de 2025 6 minutos
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A expressão “soberania digital” deixou de ser jargão em Bruxelas para virar pauta industrial. No centro desse movimento está o EuroStack, uma articulação de pesquisadores, formuladores de política e empresas europeias que tenta responder a uma pergunta incômoda: como reduzir a dependência da Europa de tecnologias e provedores estrangeiros — especialmente norte-americanos — em nuvem, IA, semicondutores, dados e plataformas?

O EuroStack é uma ideia antiga que ganhou corpo a partir de 2024, quando debates no Parlamento Europeu e relatórios de referência, liderados por nomes como Francesca Bria, consultora em economia e inovação da Comissão Europeia, e Paul Timmers, especialista em cibersegurança da Universidade de Oxford, entre outros intelectuais e especialistas em inovação e tecnologia, definiu o termo e seus objetivos. O grupo defende a criação de um conjunto de tecnologias end to end – uma coluna (stack) de tecnologias e serviços digitais desenvolvida e gerida na Europa.

O diagnóstico é direto: mais de 80% da infraestrutura e dos serviços digitais usados no continente têm origem fora dele. A consequência vai além da conta corrente tecnológica: impacta segurança, competitividade e capacidade regulatória. O EuroStack nasce, portanto, como estratégia para organizar esforços dispersos e criar um plano coordenado — de financiamento, padrões e compras públicas — capaz de destravar escala.

Os proponentes enxergam o EuroStack como uma arquitetura em camadas. Na base, semicondutores e data centers; no meio, nuvem e dados interoperáveis; no topo, aplicações e serviços públicos e privados. Em paralelo, três alavancas: 1) fundos dedicados para inovação e industrialização, 2) metas de procurement que privilegiem soluções europeias quando equivalente técnico existir e 3) padrões abertos para evitar lock-in e estimular o ecossistema open source. O objetivo não é fechar o bloco, mas criar condições para competir — e cooperar — de maneira mais equilibrada.

Se a ambição parece difusa, alguns sinais concretos já surgiram. No campo da nuvem, provedores europeus lançaram a SECA (Sovereign European Cloud API), um padrão aberto para federar data centers e facilitar a portabilidade entre fornecedores, aproximando o discurso de soberania da realidade técnica. Em paralelo, associações empresariais e de PMEs defendem metas graduais de “comprar europeu” no digital — por exemplo, começar com 25% das compras públicas e avançar ao longo da década. A lógica é conhecida na política industrial: o setor público entra como cliente-âncora para dar previsibilidade de demanda e acelerar a maturação de soluções locais.

Quem puxa a agenda? Além dos autores dos relatórios, think tanks como o CEPS, fundações como a Bertelsmann e redes como a European DIGITAL SME Alliance tornaram-se megafones do tema, enquanto executivos e lideranças de TI, telecom e manufatura defendem que a Europa só ganhará tração se casar regulação com execução industrial. Não basta o “efeito Bruxelas” de normas influentes; é preciso transformar princípios em produtos, serviços e capacidade produtiva — inclusive em foundries – fábricas de semicondutores, vitais para qualquer iniciativa de soberania digital – onde o fosso para EUA e Ásia ainda é largo.

No desenho de governança sugerido, o EuroStack funcionaria como uma coalizão multissetorial, não como um programa único da Comissão Europeia. A proposta inclui criar um fundo soberano tecnológico europeu com fôlego inicial bilionário, incentivar blending com instrumentos existentes (Digital Europe, InvestEU) e lançar desafios competitivos — um “EuroStack Challenge” — para selecionar tecnologias made in europe de alto impacto em áreas críticas (de IA confiável a data spaces setoriais). A execução depende, contudo, de alinhamento entre 27 mercados e de um equilíbrio delicado: interoperabilidade real, sem fragmentar o mercado interno.

Onde estamos hoje? O EuroStack avançou como plataforma de ideias e como rede de atores, com white papers, cartas públicas e os primeiros padrões técnicos. O próximo passo é a prova dos nove: transformar recomendações em políticas de compra, liberação de capital, contratos de longo prazo e adoção de padrões por governos e grandes âncoras privadas. É o salto da retórica para o deployment — e a história europeia mostra que isso requer pragmatismo e persistência.

Inevitavelmente, a agenda tem arestas geopolíticas. Em Washington, há quem veja cheiro de protecionismo se cláusulas de “comprar europeu” ganharem força. Do lado europeu, o argumento é de proporcionalidade: os EUA já operam com fortes instrumentos industriais (vide CHIPS Act e IRA), enquanto a UE precisa reduzir vulnerabilidades, inclusive jurídicas, como as trazidas por normas extraterritoriais (a exemplo do Cloud Act). A chave será calibrar o EuroStack como plataforma de competitividade, não como muralha. Se for bem-sucedido, pode reequilibrar a relação transatlântica; se escorregar para barreiras opacas, tende a provocar atritos comerciais e tecnológicos.

Para os defensores, o sucesso será mensurável por quatro indicadores: (1) adoção prática da SECA e de outros padrões abertos; (2) metas de compra pública que catapultem soluções europeias sem sacrificar qualidade; (3) capital na veia — fundos e coinvestments — para escalar hardware e deep tech; e (4) data spaces interoperáveis para saúde, indústria, mobilidade e governo digital. Em todos eles, o tempo é variável crítica: cada ciclo perdido consolida ainda mais os hyperscalers e fornecedores não europeus.

No fim, o EuroStack é menos um produto final e mais um roteiro de reindustrialização digital. A Europa já provou, no passado, que consegue harmonizar mercados, criar padrões globais e competir em alta tecnologia quando alinha visão política, capital e execução. A pergunta que batiza este artigo — “a Europa pode voltar a ser competitiva em inovação tecnológica?” — depende menos de ideias novas e mais da capacidade de fazer, em ritmo e escala, o que os diagnósticos já pedem. Se o continente transformar o EuroStack em contratos, código e capacidade produtiva, o pêndulo pode começar a voltar. Caso contrário, será mais um capítulo de boas intenções na longa bibliografia da soberania digital europeia.

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