
Em um momento em que o continente reavalia sua segurança, França e Reino Unido anunciaram nesta quinta-feira (10) o pacto bilateral de coordenação nuclear, apelidado de “Declaração de Northwood”, marcando um passo histórico para a autonomia estratégica da Europa.
O anúncio foi feito ao final da visita de Estado de três dias do presidente Emmanuel Macron ao Reino Unido, uma ocasião simbólica na qual os dois aliados buscaram virar a página de anos de turbulência diplomática após a decisão britânica de se retirar da União Europeia. O gesto também sinaliza um esforço de reconstrução da confiança bilateral, antes abalada pelo Brexit, agora reposicionada sob uma lógica de cooperação pragmática em defesa, segurança e migração.
Com a guerra na Ucrânia em curso, a retórica agressiva de Moscou e a percepção de incertezas no compromisso americano com a aliança militar ocidental OTAN, a dupla nuclear do continente decidiu reforçar sua cooperação. O primeiro-ministro Keir Starmer declarou que “qualquer ameaça extrema ao continente provocará uma resposta de nossas nações”. Já Emmanuel Macron destacou a criação de um comitê de supervisão para coordenar forças, mantendo a ambiguidade estratégica enquanto reforça a solidariedade defensiva.
Implicações geopolíticas:
- Autossuficiência militar: Pela primeira vez, o Reino Unido e a França se comprometeram não apenas a manter arsenais nucleares independentes, mas a coordená-los diante de crises continentais, um claro sinal de que a Europa busca menos dependência dos EUA.
- Reforço da OTAN e dissuasão: A coordenação operacional desses arsenais amplia a capacidade europeia de dissuasão autônoma, algo essencial num cenário em que a tradicional parceria EUA-Europa na área de defesa, que vem desde o final da Segunda Guerra Mundial, demonstra crescentes fragilidades.
- Sinal político: Em pronunciamento ao Parlamento britânico, Macron admitiu que é urgente reforçar o multilateralismo europeu para proteger a ordem internacional. Este acordo é o primeiro reflexo concreto desse apelo.
Essa iniciativa ocorre em sintonia com a postura europeia de “preparação permanente”, que já havia levado o bloco a adotar estratégias de estocagem de insumos médicos, kits civis e infraestrutura crítica. A coordenação nuclear é mais um capítulo desse esforço contínuo por soberania estratégica.
A França investe cerca de 5,6 bilhões de euros anualmente para manter seu arsenal nuclear, que consiste em aproximadamente 290 ogivas. Já o Reino Unido mantém seu programa com apoio tecnológico significativo dos Estados Unidos. Desde 1958, o Acordo de Defesa Mútua EUA–Reino Unido permite a cooperação no desenvolvimento de ogivas, no compartilhamento de materiais nucleares e em dados técnicos confidenciais. Os mísseis Trident II D‑5, utilizados pelos submarinos britânicos, são fabricados por empresas norte-americanas e formam a espinha dorsal da capacidade de dissuasão britânica. Além disso, os reatores utilizados na propulsão dos submarinos nucleares da Royal Navy são baseados em tecnologia americana. Embora o Reino Unido preserve o controle operacional de suas armas nucleares, o grau de interdependência tecnológica com Washington levanta questões sobre sua real autonomia estratégica, elemento que a coordenação com Paris busca complementar.
Ainda assim, apesar do financiamento robusto e da aliança com os EUA, Londres e Paris enxergam vantagem em compartilhar esforços operacionais, inclusive no co-desenvolvimento de sistemas de defesa avançados, como mísseis de cruzeiro e defesas aéreas.
O pacto também reforça uma narrativa de autonomia europeia realista. Em vez de depender exclusivamente de garantias externas, o continente começa a estruturar suas próprias redes de resposta: militares, civis e institucionais. Essa movimentação envia um sinal interno de que a Europa não será pega de surpresa, e um sinal externo de que estará pronta para reagir, inclusive com coordenação nuclear, se necessário.
Os próximos meses serão decisivos para compreender a profundidade desse movimento. O comitê de coordenação criado pelo pacto deverá definir suas regras de engajamento e capacidade de resposta, o que pode incluir desde interoperabilidade entre forças até planos conjuntos de ação em caso de crise. A reação da OTAN e da própria União Europeia à iniciativa pode acelerar discussões sobre o futuro da defesa comum, especialmente se houver pressões por mais integração entre os Estados-membros. Além disso, o pacto pode influenciar diretamente a arquitetura de segurança para a Ucrânia, à medida que se fala em formas duradouras de apoio militar a Kiev, mesmo após um eventual cessar-fogo.
Trata-se, portanto, não apenas de um gesto bilateral entre Londres e Paris, mas de um marco no redesenho da dissuasão estratégica europeia.