Onda restritiva varre o continente e reacende debate sobre identidade e liberdade

28 de outubro de 2025 4 minutos
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Portugal e Itália avançam com proibições ao uso de véus islâmicos em espaços públicos, evidenciando tensão crescente entre segurança, integração e direitos individuais num continente que abriga mais de 25 milhões de muçulmanos. Enquanto mulheres iranianas arriscam a prisão por retirar o véu, parlamentos ocidentais debatem punir quem opta por usá-lo, um paradoxo que revela menos sobre tecidos e tradições religiosas do que sobre as fissuras na identidade europeia.

O Parlamento português aprovou em 17 de outubro um projeto de lei que proíbe “roupas destinadas a ocultar o rosto” em espaços públicos, com multas entre 200 e 4 mil euros. A proposta, apresentada pelo partido Chega e aprovada com apoio da direita parlamentar – PSD, Iniciativa Liberal e CDS-PP – estabelece exceções para razões de saúde, motivos profissionais, locais de culto e condições climáticas. A esquerda votou contra, acusando a medida de islamofobia velada. O texto aguarda discussão na especialidade antes da votação final.

Quase simultaneamente, o partido Irmãos da Itália, liderado pela primeira-ministra Giorgia Meloni, apresentou legislação semelhante que vai além: proíbe o uso de véus integrais em escolas, universidades, lojas e escritórios, com multas entre 300 e 3 mil euros. A deputada Sara Kelany, coautora da proposta, justificou: “É preciso combater o nascimento de enclaves nos quais se aplique a Sharia, e não a legislação italiana”. Com maioria confortável no Parlamento, o governo não deve enfrentar obstáculos para aprovação.

A tendência não é nova. A França inaugurou esse caminho em abril de 2011 com uma lei que proíbe “usar uma peça de vestuário no espaço público que sirva para encobrir o rosto”. A legislação foi validada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em 2014, criando jurisprudência que outros países utilizariam. Bélgica (2011), Áustria (2017), Dinamarca (2018), Países Baixos (2019) e Bulgária implementaram versões próprias, sempre invocando segurança, identificação e coesão social.

A Suécia pode ser a próxima. A vice-primeira-ministra Ebba Bush defende que o país deveria proibir burcas “enquanto pudermos”, classificando o véu como expressão de interpretação estrita do Islã praticada em “estados autoritários”. Curiosamente, quase metade dos 36 países com algum tipo de restrição ao uso de burcas são de maioria muçulmana, incluindo Senegal, Chade e Marrocos.

Juristas portugueses dividem-se profundamente. A Ordem dos Advogados, o Conselho Superior do Ministério Público e a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas emitiram pareceres considerando o projeto inconstitucional, alegando violação dos direitos à identidade pessoal e liberdade religiosa. A Amnistia Internacional condenou a aprovação, classificando-a como “discriminatória” e lembrando que a legislação portuguesa já permite às autoridades exigirem que pessoas revelem o rosto “quando objetivamente necessário”.

O argumento mais invocado pelos defensores das proibições é a proteção das mulheres. André Ventura, líder do Chega, afirmou que uma mulher “forçada a usar burca” deixa de ser “livre e independente”. O paradoxo é evidente: em nome da liberdade feminina, legisladores decidem o que mulheres podem ou não vestir. Organizações de direitos humanos alertam que proibições generalistas empurram mulheres muçulmanas para o isolamento doméstico.

A justificativa de segurança pública esbarra em inconsistências. As leis permitem exceções para motivos profissionais, climáticos e artísticos, mas não para convicções religiosas genuínas. A vagueza legislativa abre portas para aplicação seletiva, criando uma categoria de cidadãos cujas escolhas de vestimenta são presumidamente suspeitas.

Por trás das preocupações jurídicas, ferve uma ansiedade política profunda. Partidos de direita e extrema-direita fazem da imigração e da identidade cultural suas bandeiras centrais, capitalizando o medo de uma Europa “islamizada”. O risco é uma Europa onde a liberdade religiosa seja cada vez mais condicionada à invisibilidade da diferença.

Se Portugal e Itália avançarem, outros países com governos de direita, como Hungria, Polônia e Áustria podem seguir com legislações ainda mais restritivas. Para as comunidades muçulmanas europeias, estimadas em mais de 25 milhões de pessoas, as mensagens são claras: vocês são tolerados, mas devem se tornar invisíveis. A questão que permanece é se a Europa, ao proibir véus em nome da liberdade, não estaria cobrindo precisamente o que deveria deixar à vista: sua própria insegurança sobre sua identidade num mundo multicultural.

 

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