Noruega pode usar lucro com energia “suja” para financiar energia limpa

06 de outubro de 2023 6 minutos
Europeanway

As ondas de calor sem precedentes que devastam os Estados Unidos, o Mediterrâneo e a China demonstram algumas das consequências do que parece ser o ano mais quente já registrado. Também é provável que 2023 seja o ano com as maiores emissões de gases de efeito estufa de todos os tempos.

Esse cenário mundial mais do que sóbrio é resultado direto da contínua incapacidade da humanidade de enfrentar as mudanças climáticas, cerca de 36 anos após o relatório semanal das Nações Unidas pela então primeira-ministra norueguesa, Gro Harlem Brundtland, que destacou a necessidade imperativa do desenvolvimento sustentável.

O mesmo cenário, até então desolador, mostra o posicionamento de um personagem novo e estratégico: a Noruega, que encontra-se diante da nobre oportunidade de liderar, de maneira mais direta, um grande passo da humanidade em direção a uma resposta global eficaz contra o aquecimento global e seus efeitos.

Como? Usando parte de seus lucros extraordinários obtidos da crise energética para alavancar os mercados de capitais internacionais e reverter a tendência de aumento das emissões globais.

Lucro de guerra nórdico

A invasão da Ucrânia pela Rússia, como esperado em qualquer tipo de conflito, trouxe desequilíbrio na estrutura de fornecimento de energia no continente europeu – uma crise de gás, em outras palavras. Essa crise resultou em uma alteração nos fluxos de receita para outros produtores de combustíveis fósseis.

Os lucros desses países produtores de combustíveis fósseis foram enormes. A Noruega que o diga. Nas duas décadas anteriores, o fluxo de caixa líquido da Noruega com exportações de petróleo e gás atingiu cerca de 30 bilhões de dólares por ano. Em 2022, ano do início do conflito, esse valor disparou para US$ 130 bilhões.

A previsão para 2023 é que a Noruega arrecade cerca de 150 bilhões de dólares em lucros – fluxo este complementado, inclusive, pelos bilhões a mais devido aos preços em alta de suas exportações de eletricidade.

Ao mesmo tempo, o esforço político global para enfrentar as mudanças climáticas fica sendo prejudicado por disputas entre o Norte e o Sul, principalmente em relação ao financiamento. Não se trata apenas de os países mais pobres, que contribuem menos para o problema e estão sofrendo mais, receberem ajuda inadequada. Também é uma luta sobre o financiamento da transição global para uma energia com baixa emissão de carbono.

O crescimento das emissões é predominantemente proveniente do mundo em desenvolvimento, e mudar isso requer um investimento maciço em tecnologias limpas. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) estimou uma faixa de investimento de 1,5 trilhão a 3 trilhões de dólares por ano em países fora da OCDE durante esta década para cumprir os objetivos de Paris.

Enquanto isso, o Grupo Independente de Especialistas de Alto Nível sobre Financiamento Climático aponta as necessidades de os países em desenvolvimento – com exceção da China – desembolsarem de 2 a 2,8 trilhões de dólares por ano, dos quais pelo menos 1 trilhão de dólares por ano precisaria ser em investimento internacional.

Um paradoxo que assombra todos esses cálculos é que as tecnologias de energia limpa agora são potencialmente mais baratas do que os combustíveis fósseis, mas apenas onde o capital é barato e abundante. Na maioria dos países em desenvolvimento, isso não ocorre.

Essa transição está sendo ainda mais sufocada pela dívida pós-Covid, pelas taxas de juros mais altas e pelos enormes subsídios dos Estados Unidos para a redução da Inflação, que afastam os investidores em energia limpa dos países em desenvolvimento.

Noruega versus desigualdade ambiental

Em termos reais, a atual bonança energética da Noruega é comparável, nos preços atuais, a todo o Plano Marshall dos EUA que, de 1948 a 1951, em um movimento global visionário, injetou 13,3 bilhões de dólares na Europa. Isso ajudou a estabilizar o mundo e lançou as bases para uma rápida e sustentada recuperação pós-guerra.

Se a Noruega considerasse algo semelhante e usasse seus recursos de maneira inteligente para alavancar investimentos privados em energia limpa em grande escala por meio de seguro de risco, poderia mudar completamente o jogo do aquecimento global.

A recente cúpula de financiamento climático de Paris avançou com uma proposta para segurar o risco de câmbio, mas mais uma vez ilustrou o poder de países obstinados em prejudicar o progresso real.

Apesar disso, a chave para o problema mostra-se clara: garantir o risco, especificamente para investimentos de baixo carbono em países em desenvolvimento. A experiência de alguns programas piloto, bem como pesquisas acadêmicas cobertas pelo IPCC, indicam que garantias de risco público podem alavancar até quinze vezes mais investimentos privados.

Apenas um terço dos lucros indiretos da Noruega com a guerra na Ucrânia equivale a 50 bilhões de dólares. Se o país se comprometesse em mobilizar esse montante para garantir investimentos de mercado de capitais de baixo carbono nos países em desenvolvimento, poderia alavancar metade do investimento estrangeiro anual de que esses países desesperadamente precisam.

A Noruega cuida bem de seu próprio gramado, pois é campeã em geração de energia limpa. Seus enormes lucros durante a crise energética, por outro lado, vieram principalmente da exportação de carbono. Os lucros obtidos com os combustíveis fósseis agora estão inequivocamente manchados pelo custo e sofrimento causados globalmente pelas mudanças climáticas. Enfrentar tal desigualdade é o maior imperativo moral internacional desde a Segunda Guerra Mundial.

O país nórdico tem hoje a chance de demonstrar o potencial espetacular das garantias de risco em investimentos internacionais em energia limpa, em grande escala, para impulsionar um movimento internacional de financiamento com a grandeza necessária para finalmente eclipsar o das energias fósseis.

E também para oferecer uma luz de esperança em uma situação global cada vez mais desesperada. Brundtland ficaria orgulhosa.

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