
“La France est une République indivisible, laïque, démocratique et sociale.” O princípio inscrito na Constituição de 1958 expressa a aspiração de unidade que moldou a Quinta República. Mais de seis décadas depois, essa ideia parece distante de uma realidade marcada por divisões políticas profundas e sucessivas trocas de governo.
A renúncia do primeiro-ministro Sébastien Lecornu, menos de um mês após assumir o cargo, reacendeu o debate sobre a capacidade do sistema político francês de sustentar governos estáveis. A saída, aceita pelo presidente Emmanuel Macron, reforça o impasse de um Executivo sem maioria parlamentar e amplia a incerteza sobre os rumos da segunda maior economia da zona do euro.
Lecornu havia sido nomeado em 9 de setembro com a missão de recompor a base de apoio de Macron na Assembleia Nacional. O gabinete anunciado no domingo (5) preservou figuras centrais de gestões anteriores, como Jean-Noël Barrot nas Relações Exteriores, Bruno Retailleau no Interior e Élisabeth Borne na Educação, e ignorou demandas partidárias específicas, especialmente da esquerda, que ficou totalmente excluída. Diante da ameaça de uma moção de desconfiança, o premiê preferiu renunciar antes de apresentar seu programa de governo.
Desde 2022, a França contabiliza cinco primeiros-ministros: Élisabeth Borne (maio de 2022 a janeiro de 2024), Gabriel Attal (janeiro a setembro de 2024), Michel Barnier (setembro a dezembro de 2024), François Bayrou (dezembro de 2024 a setembro de 2025) e Sébastien Lecornu (setembro a outubro de 2025). A falta de maioria legislativa e a crescente polarização entre a esquerda e a extrema direita reduziram drasticamente a margem de ação do governo. Reformas fiscais e previdenciárias, essenciais para conter o endividamento público, encontram resistência social e bloqueios parlamentares sucessivos.
A instabilidade política francesa ocorre em um momento de desaceleração econômica e incertezas fiscais no bloco europeu. A renúncia de Lecornu provocou reações imediatas nos mercados: o spread entre os títulos de dívida franceses e alemães ampliou-se ligeiramente, e o euro sofreu desvalorização moderada. Analistas alertam que uma crise prolongada pode afetar a credibilidade financeira do país e, por consequência, a confiança no núcleo da União Europeia.
Em Bruxelas, o impasse é observado com preocupação. A França é peça central em dossiês estratégicos, desde a política industrial até o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. A oposição francesa ao tratado com o Mercosul baseia-se principalmente em preocupações do setor agrícola: produtores temem a concorrência de carne bovina, frango, açúcar e milho provenientes do Brasil e da Argentina, países que utilizam agroquímicos e práticas pecuárias proibidas na Europa. Com Paris politicamente paralisada, sua capacidade de exercer liderança dentro do bloco, seja para bloquear ou negociar acordos, tende a diminuir.
Macron sob pressão
Emmanuel Macron, que tem mandato até 2027, enfrenta opções limitadas: buscar uma nova coalizão multipartidária, dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas, ou recorrer a uma “coabitação” com um primeiro-ministro de outro campo político, arranjo já experimentado em momentos de crise sob a Quinta República.
Marine Le Pen, líder do Rassemblement National (extrema direita), e Jean-Luc Mélenchon, da esquerda radical, pedem novas eleições e questionam a legitimidade do governo. Nenhum dos grupos, contudo, detém força suficiente para formar maioria estável, o que mantém a França em um ciclo de paralisia política. O Rassemblement National, que já desempenhou papel decisivo na queda de governos anteriores por meio de moções de censura, segue como força de bloqueio capaz de inviabilizar qualquer gabinete que não atenda suas demandas.
A crise francesa reflete uma tendência mais ampla na Europa: a fragmentação partidária e o enfraquecimento do centro político, que tornam reformas estruturais cada vez mais difíceis. Para a União Europeia, a instabilidade em Paris representa um risco estratégico, não apenas econômico, mas também simbólico, diante do papel histórico da França como guardiã dos valores republicanos e da coesão continental.