
Em um movimento que combina pragmatismo geopolítico com memórias recentes da pandemia, a União Europeia deu nesta semana mais um passo decisivo rumo à construção de uma nova doutrina de resiliência continental. A Comissão Europeia anunciou uma estratégia inédita de estocagem de bens essenciais, como alimentos, água potável, combustíveis, medicamentos e equipamentos médicos — para garantir que o bloco esteja preparado para cenários de calamidade, desde crises sanitárias até conflitos armados.
Mais do que uma reação ao imprevisível, o plano representa uma inflexão histórica: a União Europeia está se organizando não apenas para responder, mas para antecipar uma eventual disrupção sistêmica, seja ela provocada por pandemias, mudanças climáticas, ataques cibernéticos ou pela possibilidade, cada vez mais real, de um conflito com a Rússia.
O novo pacto europeu pela sobrevivência
O anúncio, feito pela comissária de gestão de crises Hadja Lahbib, vai além do simbolismo político. A proposta inclui a formação de uma rede pan-europeia de estocagem, com compra coordenada de insumos estratégicos e o desenvolvimento de mecanismos para identificar vulnerabilidades em tempo real. Entre os itens listados: drones, equipamentos de purificação de água, geradores de emergência, pontes móveis e dispositivos para reparo de cabos submarinos. Um aceno claro à guerra híbrida e aos riscos à infraestrutura crítica.
Segundo Lahbib, “quanto mais nos prepararmos, menos entraremos em pânico”. É um mantra que parece ecoar o trauma europeu da COVID-19, quando a falta de máscaras e vacinas expôs as fragilidades de um mercado único que, naquele momento, se mostrou descoordenado.
A estratégia surge em meio a crescentes alertas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a aliança militar do Ocidente: segundo seu secretário-geral Jens Stoltenberg a Rússia pode estar pronta para confrontar o Ocidente militarmente nos próximos cinco anos. Com a guerra na Ucrânia já em seu terceiro ano, e com a retórica nuclear de Moscou mais agressiva, a preparação europeia deixou de ser teórica.
Países como Suécia, Alemanha, Finlândia e Estônia (os dois últimos fazem fronteira com a Rússia) já vivem em modo preventivo. Berlim elaborou um plano militar de mil páginas para mobilizar até 800 mil soldados da OTAN, enquanto Helsinque ergue uma cerca na fronteira com a Rússia e reativa seus bunkers da Guerra Fria. A Suécia distribuiu a mais de 5 milhões de lares o guia “Se a Crise ou a Guerra Chegarem”, recomendando que cada cidadão tenha estoque para sobreviver ao menos três dias por conta própria, diretriz semelhante à recomendada pela própria UE em março.
Embora o foco militar esteja evidente, o novo plano da Comissão Europeia aposta também em resiliência civil e sanitária. Além da estocagem física, será criado um Acelerador de Contramedidas Médicas, que funcionará como balcão único para apoiar empresas no desenvolvimento de vacinas e terapêuticos. A HERA, a autoridade europeia de resposta a emergências de saúde, terá seu orçamento duplicado até 2027, chegando a €200 milhões.
Em paralelo, o bloco pretende criar um sistema de monitoramento de esgoto capaz de prever surtos infecciosos, um tipo de radar epidemiológico que pode oferecer semanas de vantagem frente a uma nova crise sanitária.
Do ponto de vista econômico, o plano reforça uma mudança de paradigma: a preparação deixou de ser um custo e passou a ser um investimento estratégico. A lógica do just-in-time — dominante nas últimas décadas — está sendo substituída por um modelo de redundância planejada, no qual o excesso não é desperdício, mas seguro de vida.