Estufas transformam deserto em horta e criam dilemas para a Europa

27 de agosto de 2025 5 minutos
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Do espaço, a paisagem é quase surreal. Entre El Ejido e a cidade de Almeria, no sul da Espanha, uma imensa mancha branca se estende pelo território árido. São 32 mil hectares de estufas de plástico que, vistas do alto, lembram um mar. Trata-se do chamado “Mar de Plástico”, considerado pela Nasa a única construção humana visível a olho nu desde o espaço. Ali, em uma das regiões mais secas da Europa, onde chove em média apenas 54 dias por ano, floresce um dos maiores polos agrícolas do continente, responsável por cerca de quatro milhões de toneladas anuais de frutas e hortaliças como tomate, pimentão, pepino, melão e melancia.

Esse modelo intensivo transformou a economia local. O cultivo em estufas responde por 40% do PIB de Almeria, gera aproximadamente 100 mil empregos e movimenta 5,1 bilhões de dólares por ano. O destino da produção é majoritariamente internacional: Alemanha, Reino Unido, França, Itália e até Estados Unidos importam as colheitas desse deserto convertido em horta. A região passou a ser conhecida como “a horta da Europa” e, ao lado do turismo, tornou-se motor econômico da Andaluzia.

O impulso produtivo começou a se consolidar na década de 1950, quando o governo espanhol buscou nos aquíferos subterrâneos uma solução para a aridez. A combinação entre sol abundante e irrigação artificial criou as condições para que Almeria escapasse da pobreza. Máquinas importadas da Califórnia garantiram a extração de água em escala, enquanto a adaptação das estufas holandesas ao plástico, mais resistente que o vidro aos ventos locais, completou a equação. O uso de areia para reter umidade no solo fechou o ciclo tecnológico que transformaria a região em potência agrícola.

Se o milagre econômico impressiona, os custos ambientais e sociais preocupam. O aquífero de Níjar está em superexploração há mais de vinte anos, consumindo mais água do que é capaz de repor. As estufas retiram cerca de 1,3 bilhão de litros por ano de reservas subterrâneas, segundo medições oficiais. Embora produtores afirmem ter diversificado fontes de irrigação, incluindo usinas de dessalinização, captação de chuva e irrigação por gotejamento que reduz em até 60% o consumo, ambientalistas alertam para a contradição de transformar a zona mais árida do continente em supermercado europeu. Em tempos de mudança climática, reduzir a produção tornou-se uma demanda recorrente de organizações locais.

O plástico que sustenta as estufas é outro desafio. Estima-se que sejam geradas cerca de 30 mil toneladas de resíduos por ano. Ainda que produtores defendam reciclar a totalidade do material utilizado, relatórios apontam que apenas 85% é reaproveitado. O restante se acumula em aterros, margens de estradas e até no mar.

Pesquisadores da Universidade de Estocolmo e do CSIC, na Espanha, identificaram níveis alarmantes de microplásticos em áreas costeiras próximas, como o Mar de Alboran e Cabo de Gata. Em Roquetas de Mar, campos de erva marinha (Posidonia oceanica) chegaram a apresentar até trinta vezes mais microplásticos do que áreas de controle em Mallorca.

A dimensão social do modelo é igualmente controversa. Cerca de 60% da força de trabalho nas estufas é composta por migrantes, em sua maioria vindos do norte da África. Estima-se que 25 mil dos 110 mil trabalhadores não tenham contrato formal. Muitos vivem em condições precárias, em moradias improvisadas feitas de sucata, sem eletricidade ou água encanada. Há relatos de salários entre três e cinco euros por dia, além de custos adicionais de transporte para chegar às plantações. Organizações como a Associação em Prol dos Direitos Humanos da Andaluzia denunciam a exploração e a ausência de políticas públicas eficazes de habitação e transporte. Sindicatos têm obtido vitórias judiciais contra produtores por não pagamento de horas extras ou salários, mas casos de discriminação e tensão racial seguem frequentes.

Esse paradoxo é visível em El Ejido, um dos principais municípios agrícolas. Ali, quase um terço da população é estrangeira. Apesar de ostentar uma das menores taxas de desemprego da Andaluzia, a cidade figura entre as mais pobres da Espanha em termos de renda per capita e apresenta forte desigualdade. Para estudiosos locais, a riqueza produzida pelo campo não se reflete na economia urbana porque parte significativa da mão de obra permanece à margem do sistema formal.

A pressão internacional também cresce. Reportagens do The Guardian e da Al Jazeera revelaram as condições quase escravistas enfrentadas por trabalhadores, com jornadas extenuantes e ausência de fiscalização adequada. Ao mesmo tempo, consumidores europeus continuam demandando frutas e vegetais frescos a preços baixos, mantendo o ciclo de pressão por produtividade. Produtores defendem que vêm ampliando a formalização e destacam que 38 mil estrangeiros possuem contratos equivalentes aos de cidadãos espanhóis. Alegam ainda que não podem ser responsabilizados por como os trabalhadores utilizam sua renda, seja em remessas para o país de origem ou em habitação precária.

O “Mar de Plástico” tornou-se símbolo de uma encruzilhada. É prova de que inovação tecnológica pode transformar o deserto em abundância, mas também ilustra os limites de um modelo agrícola que prioriza exportação em detrimento de equilíbrio ambiental e social. O dilema é europeu, não apenas espanhol: ao abastecer o continente com vegetais durante todo o ano, Almeria expõe as contradições de um sistema agroalimentar dependente de recursos finitos, mão de obra vulnerável e resíduos persistentes. O futuro da região, e talvez de parte da segurança alimentar da Europa, dependerá da capacidade de reconciliar produtividade com sustentabilidade real.

 

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