A União Europeia chega aos seus 30 anos com muitos desafios pela frente, é um exemplo ainda para muitas regiões do mundo. “A lição maior parece-me ser a perseverança, a persistência, a resiliência do projeto”, explica Estevão de Rezende Martins, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB). Martins é formado em Filosofia com doutorado em Filosofia e História pela Universitaet Muenchen (Ludwig-Maximilian), pós-doutorados em Teoria e Filosofia da História e em História das Ideias na Alemanha, na Áustria e na França. Especialista em história contemporânea (Europa, União Europeia e relações internacionais) e história política (Brasil, Europa ocidental e relações internacionais).
Os países que juntos se consolidaram como uma importante potência econômica, social e política, neste ano se depararam com a invasão da Ucrânia pela Rússia e já experimentam os reflexos dessa guerra no dia a dia dos seus cidadãos. Banhos mais curtos, luzes apagadas e ações adotadas com foco em espaços públicos para poupar energia e contribuir para estocar reservas. Mas Martins é um otimista: “Creio que a União Europeia (UE) veio para ficar. O vexame do Brexit (na Grã-Bretanha quanto externamente) terá feito ver aos eurocéticos (sempre os há um pouco por todos os lados) na União que esse não é o bom caminho. Assim: no meu entender, a UE veio para ficar”.
European Way – Neste ano comemora-se os 30 anos do Tratado de Maastricht, que deu o início formal da União Europeia. O que há para se celebrar?
O Tratado de Maastricht foi assinado pelo Conselho Europeu em 7 de fevereiro de 1992 em Maastricht, Holanda. Representa o maior passo na integração europeia desde a fundação das Comunidades Europeias (CE). Com este tratado, que substituiu o Tratado de Roma em 1957, a União Europeia (UE) foi fundada como a associação abrangente para as Comunidades Europeias, a política externa e de segurança comum e a cooperação nas áreas da justiça e assuntos internos. Além do próprio tratado da UE, o tratado de Maastricht também contém disposições sobre mudanças abrangentes nos tratados que estabelecem as Comunidades Europeias, ou seja, o tratado CE, o tratado EURATOM e o tratado CECA, que ainda estava em vigor na época. Entrou em vigor em 1º de novembro de 1993. O estatuto jurídico assim criado foi sucessivamente atualizado e adaptado (notadamente por causa do aumento sucessivo dos estados-membros) em 1999 pelo Tratado de Amsterdã, em 2003 pelo Tratado de Nice e em 2007 pelo Tratado de Lisboa.
Algo a celebrar: indiscutivelmente, o marco de Maastricht e o Ato Único Europeu formam a espinha dorsal da consolidação da UE, organização inédita na ordem mundial, que demonstra ser o primeiro grande projeto bem sucedido de integração regional pacífica, nos planos econômico, político, social e cultural. Por se tratar de um conjunto complexo e – em certo sentido – algo heterogêneo em suas histórias nacionais, inovou decididamente para levar em conta a diversidade na construção da união. Altos e baixos sempre os houve, os há e os haverá. Mas o rumo é constante e ascendente.
EW – Quais são as principais lições e principais falhas no desenvolvimento da União Europeia desde então?
A UE teve de reinventar uma ordem regional apta a gerar convergência interna e coesão externa. Missão complexa e árdua, em particular ao longo da Guerra Fria, sobre cujo pano de fundo a U E teve de nascer (desde os anos 1950 até a queda do Muro de Berlim em 1990). Evoluiu e cresceu (em 2004 quem sabe depressa demais, mas tal jogada fez parte da política de ocupação do espaço político-econômico no vácuo deixado pelo desaparecimento da URSS e da Cortina de Ferro no leste europeu) até 28 membros (caiu para 27 com o Brexit).
A lição maior parece-me ser a perseverança, a persistência, a resiliência do projeto – que sempre contou com o apoio de fundo de todos os países membros, mesmo quando seus governos nacionais tinham composições políticas céticas ou reticentes. Em momento algum (independente de alguns discursos derrotistas cá e lá) tratou-se de abrir mão da UE e de sua história.
O Reino Unido – cujo ingresso fora bloqueado por De Gaulle e cuja participação sempre foi cheia de ressalvas e pés-atrás – é a exceção que confirma a regra.
A maior “falha” (se é que se pode assim) é a lentidão dos processos decisórios. Não é tarefa fácil fazer mover-se um ‘pesado transatlântico’ com processos decisórios complicados, que recorrem a cálculos de maioria diversos (e olhe que foi ‘simplificado’ em parte com o Tratado de Lisboa – sucedâneo do projeto constitucional de 2003, que não chegou a ser adotado como tal). Mesmo assim a U E contornou a crise financeira de 2008 e tem reagido com mais firmeza e menos lentidão na atual agressão à Ucrânia.
EW – Como o projeto europeu de integração influenciou e ainda influencia outras regiões do mundo?
O projeto da UE (cuja viabilidade político-econômica remonta ao fim da 2ª Guerra Mundial [em especial ao Plano Marshall] e recorre a um tronco cultural mais ou menos comum no continente) inspirou sobretudo o projeto do Mercosul (estagnado há anos, por falta de componentes politicamente seguros e resilientes). No resto do mundo foi o aspecto do mercado comum (commodities, produtos industrializados, padronização de tarifas aduaneiras, etc.) na economia que parece ter sido o mais influente, mas sem o componente político integracionista.
EW – Debate-se muito a polarização do mundo entre EUA e China. Mas como os europeus criam regras, padrões, políticas e valores que extrapolam o Velho Continente e influenciam todo o mundo?
A UE sempre procurou representar uma alternativa ao mundo bipolar da Guerra Fria e ao esboço de bipolaridade USA-China (bem mais recente, e agora fortemente comprometido com os desdobramentos da desordem produtiva mundial introduzida pela bruta freada da pandemia desde 2020), preferindo um mundo multipolar, em que sua composição original da diversidade em uma arquitetura complexa teria o condão de mostrar a outras regiões do mundo que é possível organizar a diversidade sem esmagar caraterísticas próprias de cada sociedade-nação, com um ‘preço’ razoável: o compartilhamento da soberania e da responsabilidade para lograr garantir objetivos comuns de interesse de todos os ‘sócios’.
Obviamente isso não funciona da noite para o dia. Na (des)ordem internacional o ritmo se conta por décadas.
EW – Apesar da autonomia de cada país, com diferentes ideologias de governo, a União Europeia parece avançar como uma voz única no mundo diplomático. Qual o impacto disso?
Justamente o crescimento da ‘voz unida’ como forma de coesão para fora é uma vantagem qualitativa que beneficia, por ser conjunta, cada ‘sócio’ do clube. Isso pesa no sistema ONU (no qual hoje somente a França tem assento permanente no Conselho de Segurança – e tem o costume de seguir a deliberação da UE. Chipre ou Malta (dos pequeninos), Portugal e Áustria (dos médios), Itália e Espanha (dos grandes), França e Alemanha (os maiores) têm todos interesse nessa face unida ad extra, mesmo se a construção do script possa custar vivos debates no plano interno.
EW – Como o senhor vê os atuais desafios do bloco: energia, guerra da Ucrânia, mudanças climáticas?
Energia e dilema bélico são sem dúvida:
– o calcanhar de Aquiles para a matriz energética (não se pensou que a Rússia – indispensável para o gás – cometesse a insânia de uma guerra de agressão contra a Ucrânia, mas visando também ao oeste europeu, que deve ter imaginado tomar como refém – em especial após a reação mitigada de 2014 em torno da Crimeia). Há aqui sim uma vulnerabilidade econômica séria (dependente de vários fatores; dois principais: o gás russo; a desnuclearização da produção de eletricidade, em especial na Alemanha [pressão ecossistêmica de decênios] – já se está dando aqui uma guinada para substituir um e retomar a outra).
– o voto de paz que ‘batizou’ a U E em seu nascedouro: guerra nunca mais. A intervenção às suas portas no conflito da ex-Iugoslávia foi um drama inicial, que deixou em muitos um complexo de ‘pecado’ com relação a seu comitment to Peace. A vulnerabilidade de um gigante econômico e militar como a U E (conquanto menor do que os USA – que estão longe…) diante de novo conflito à sua porta parece ser também uma fraqueza. Pelo que vemos, não é o caso.
A Rússia patina (às custas dos pobres ucranianos), pois a UE (com USA) sustentam a Ucrânia por óbvias razões de autodefesa preventiva e para mostrar a musculatura.
A rapidíssima adesão à OTAN da Finlândia e da Suécia, após longuíssima tradição de neutralidade, mostra como a aposta russa de debilitação da Europa falhou e como a UE e a OTAN acertaram ponteiros para fazer frente comum à ameaça. Dizia-se que a OTAN tinha perdido sua razão de ser. A Rússia fê-la renascer e a UE ganha com isso.
– mudanças climáticas: um desafio planetário. As economias do Norte sabem do problema, mas têm de lidar com o árduo programa de se reinventar. A globalização foi nociva ao clima (em particular CO2 e materiais poluentes de longo prazo) e a re-regionalização dos parques produtivos ‘saneados’ tem custos elevados e prazos longos. E o mecanismo financeiro dos “créditos de carbono” e outros modos de transformar poluição em dinheiro aparentemente vai empurrando para a frente o efeito corretor. O que vale para todo o ‘Norte global’ – USA, Canada, UE, Rússia, China, Japão, etc.)
EW – Como o senhor vê o futuro do bloco?
Nesse atualmente conturbado século 21, os 70 anos de sucessivos passos de construção da integração europeia ocidental, que se estendeu ao leste europeu a partir de 2004, são o único exemplo bem-sucedido de uma história política de entendimento negociado e de boas práticas de construção coletiva de deliberação compartilhada. Creio que a UE veio para ficar. O vexame do Brexit (na Grã-Bretanha quanto externamente) terá feito ver aos eurocéticos (sempre os há um pouco por todos os lados) na União que esse não é o bom caminho. Assim: no meu entender, a UE veio para ficar.