
Um dos sistemas oceânicos mais importantes do planeta está perdendo força, e cientistas alertam que o ponto de não retorno pode estar mais próximo do que se imaginava. O cenário soa contraditório: enquanto o planeta aquece, partes da Europa podem congelar. Mas o paradoxo é real, e alguns governos já começam a tratá-lo como ameaça à segurança nacional.
O sistema em questão é a Circulação Meridional de Revolvimento do Atlântico (AMOC), uma gigantesca esteira transportadora oceânica que funciona como o aquecedor natural da Europa. Águas quentes dos trópicos fluem pela superfície em direção ao norte, liberando calor para a atmosfera europeia. Já resfriadas e mais densas, essas águas afundam e retornam ao sul pelas profundezas do oceano.
É esse mecanismo que explica por que Londres tem invernos relativamente amenos enquanto cidades canadenses na mesma latitude enfrentam meses de temperaturas extremamente negativas. Mas o sistema está perdendo força, e novas pesquisas sugerem que o ponto de não retorno pode estar mais próximo do que se imaginava.
O motor que falha
Um estudo coordenado por cinco institutos internacionais de pesquisa e publicado na revista Environmental Research Letters traz projeções alarmantes. Simulações baseadas em 38 modelos climáticos diferentes, com horizontes temporais estendidos até os anos 2300 a 2500, indicam que o ponto de inflexão nos mares-chave do Atlântico Norte pode ocorrer já nas próximas décadas.
Stefan Rahmstorf, do Instituto de Potsdam para Pesquisa sobre Impacto Climático, afirma que uma vez ultrapassado esse limite, o desligamento da AMOC se torna inevitável devido a um mecanismo de retroalimentação. O calor liberado pelo extremo Atlântico Norte cairia para menos de 20% do valor atual, e em algumas simulações, quase a zero.
O aquecimento global está acelerando o problema de forma paradoxal. O derretimento do gelo da Groenlândia despeja enormes volumes de água doce no Atlântico Norte. Essa água menos salgada e menos densa dificulta o afundamento das correntes, enfraquecendo todo o sistema. É como se o próprio aquecimento estivesse sabotando o mecanismo que mantém a Europa aquecida.
Sybren Drijfhout, autor principal do estudo holandês, é direto: em todos os cenários de altas emissões analisados, o esgotamento completo do sistema após 2100 é inevitável, já que pode ocorrer a partir de 50 anos do ponto de inflexão.
As consequências seriam dramáticas e desiguais. Um relatório assinado por mais de 160 cientistas descreve como o gelo marinho de inverno cobriria o Mar do Norte, com temperaturas podendo cair até menos 30 graus na Escócia. Londres teria três meses congelados por ano. O clima de inverno na Escandinávia se tornaria semelhante ao do Alasca.
Mas o colapso não traria apenas frio. Com menos umidade chegando à Europa, os verões seriam marcados por secas intensas. Algumas regiões enfrentariam desertificação progressiva, criando um continente dividido entre extremos.
Peter Ditlevsen, pesquisador dinamarquês que assinou carta aberta aos países nórdicos, alerta que o impacto limitaria drasticamente quais culturas podem ser cultivadas na região. A segurança alimentar europeia estaria em risco.
Efeitos que cruzam oceanos
Os impactos transcendem fronteiras continentais. Para os Estados Unidos, significaria temperaturas oceânicas mais quentes e maior elevação do nível do mar ao longo da costa leste. Pescarias e ecossistemas costeiros sofreriam mudanças devastadoras, assim como comunidades e infraestrutura enfrentariam risco crescente de inundações.
Nos trópicos, os padrões de monções mudariam. A Zona de Convergência Intertropical se deslocaria, alterando radicalmente os regimes de chuva na África e América do Sul. Um estudo sugere que o ciclo sazonal da Amazônia poderia até se inverter, com estações secas se tornando úmidas e vice-versa.
Debate científico e incertezas
A AMOC já entrou em colapso no passado, há cerca de 12 mil anos, devolvendo partes da Europa e da América do Norte a condições próximas da era do gelo por 1.300 anos. A diferença agora é que o colapso ocorreria em um contexto de aquecimento global contínuo, criando uma sobreposição de extremos climáticos sem precedentes na história humana moderna.
Nem todos os cientistas concordam com a urgência do cenário. Um estudo publicado na Nature em fevereiro argumenta que a AMOC é resistente a forçamentos extremos de gases de efeito estufa, sugerindo que um colapso completo seria improvável neste século. As divergências refletem diferenças metodológicas fundamentais entre os modelos utilizados.
Mas há pouco debate sobre um ponto: a AMOC está enfraquecendo. Análises identificam uma desaceleração de aproximadamente 15% desde meados do século XX, confirmada por dados de um cabo de telecomunicações submarino entre a Flórida e as Bahamas.






