"Davos do Norte" debate derretimento – e futuro – do Ártico

Realizada na Islândia, a Arctic Circle Assembly deixou ainda mais evidente: o aquecimento global aumenta a cobiça de grandes potências sobre a região

14 de outubro de 2019 6 minutos
Europeanway

Criada em 2012, a Assembleia do Círculo Ártico (ou "Arctic Circle Assembly", no original) reúne todos os anos políticos, cientistas, ambientalistas e outros interessados no futuro da região. A cada edição, o evento atrai mais gente – e o aumento do interesse está diretamente ligado tanto aos problemas causados pelo aquecimento global, como o derretimento do gelo do Polo Norte, quanto aos desdobramentos econômicos, sociais e geopolíticos desse fenômeno. A "oferta" do presidente americano Donald Trump de comprar a Groenlândia – país que integra o Reino da Dinamarca e que fica no Ártico -, revelada em agosto, é um exemplo da crescente cobiça de grandes potências sobre a região, mas certamente não é o único.

Realizada novamente na capital da Islândia, Reykjavík, a nova edição da Arctic Circle Assembly atraiu entre quinta-feira e domingo cerca de 2 mil participantes, egressos de mais de 50 países. Considerado uma espécie de "Davos do Ártico" – uma referência aos encontros entre líderes políticos e empresariais realizados anualmente pelo Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça -, o evento, realizado no centro de convenções Harpa (foto), teve mais de 600 palestrantes. Eles integraram 188 painéis sobre as questões mais urgentes relacionadas ao círculo polar do norte do planeta, como mudanças climáticas, segurança e exploração de novas descobertas de petróleo e gás.

LEIA TAMBÉM:
– Por que Donald Trump tem tanta fixação com a Escandinávia?
– Como robôs dinamarqueses vão melhorar os mapas do Ártico
– Derretimento do gelo revela base militar secreta dos EUA na Groenlândia

A abertura de novas rotas marítimas e o aumento do acesso a recursos energéticos, causados pelo aumento das temporaturas do planeta, ficaram entre os debates centrais do encontro. Não foi casual, por exemplo, que o mais graduado representante dos Estados Unidos no evento tenha sido Rick Perry, secretário de Energia do país.

Em sua fala, na última quinta (10/10), Perry pediu que "nações livres" resistam às tentativas daqueles "que buscam dominar o Ártico de fora", uma aparente referência à China, que se autodenomina uma potência "próxima ao Ártico". Ele também alertou contra os países que tentam fazer o mesmo com a venda de energia, uma referência indireta à Rússia.

O jornalista Marc Champion, que escreve sobre política internacional para a agência Bloomberg, diz que o Ártico tem cada vez mais ocupado um papel de protagonista de um embate geopolítico do século XXI, a exemplo do que o Canal de Suez foi no século XX. Depois de Perry, em diferentes momentos, falaram Dmitry Artyukhov, governador da região de Yamal-Nenets, na Rússia, e representantes diplomáticos de China, Coreia do Sul e Japão, todos com mensagens sobre como eles são aliados estratégicos dos governos do Ártico.

Escandinavos estão alertas para a cobiça
E o que dizem os países da região? Eles certamente estão alertas para a sanha internacional. "Estamos vendo surgir diante de nossos olhos um novo mapa econômico, comercial e político", disse o ex-presidente da Islândia, Oláfur Ragnar Grímsson, que fundou e preside a Arctic Circle Assembly. “O que está acontecendo agora é, primeiro, o surgimento da Ásia como principal fonte de crescimento econômico no século XXI e, segundo, a abertura do Ártico que, combinada com as novas tecnologias, está criando acesso ao petróleo e gás para suprir esse crescimento."

O primeiro-ministro da Finlândia, Antti Rinne, reiterou a mensagem sobre a preocupação do país com a sustentabilidade na definição dos destinos do Ártico. A pauta tem marcado a passagem do país pela presidência da União Europeia, assumida em julho. "O combate às mudanças climáticas, o desenvolvimento sustentável e o respeito pelos direitos dos povos indígenas estão entre os elementos-chave da próxima estratégia para nossa política no Ártico”, disse ele. Renne participou da sessão de abertura do evento ao lado da primeira-ministra da Islândia, Katrín Jakobsdóttir.

Entre todas as manifestações dos líderes da região, uma teve um particular peso simbólico. Kim Kielsen, premiê da Groenlândia, disse que a atenção que o Ártico e a Groenlândia têm recebido está diretamente ligada aos problemas do aquecimento global, uma preocupação que precisa estar na agenda de todos o planeta, discursou ele.

Kielsen não citou Donald Trump nominalmente, mas não deixou de abordar a malograda – e, para muitos groenlandeses e dinamarqueses, também ofensiva – "proposta" de aquisição da ilha. "A oferta de compra de nosso país é um conceito que nos é estranho e não se alinha com nossa cultura", disse ele. "Nosso país não está à venda, mas estamos abertos a fazer negócios."

Uma declaração atribuída ao político britânico Lorde Palmerston (1784-1865), que integra a cartilha básica das relações internacionais, reza que os países não têm amigos, mas interesses em comum. Na entrelinha de seu discurso, o premiê da Groenlândia lembrou dessa máxima ao falar de sua preocupação ambiental e de seu objetivo de fechar bons negócios para sua terra. A frase é batida, mas, ao que parece, precisa ser revisitada com mais frequência pelos líderes do mundo todo – seja no Ártico, nos Estados Unidos ou no Brasil.

(Foto: Arctic Circle Assembly / divulgação)

Europeanway

Busca