
No coração da tensão comercial entre Ásia e Ocidente, um alarme soa em Bruxelas: as exportações chinesas para a Europa cresceram com intensidade suficiente para despertar preocupações entre líderes empresariais e autoridades da União Europeia. A advertência vem de Jens Eskelund, presidente da Câmara de Comércio da UE na China, que acusa três motores principais por trás desse avanço: competitividade das empresas chinesas, câmbio favorável e apoio estatal robusto, e pede que Pequim retome o equilíbrio entre oferta e demanda para mitigar riscos.
O alerta encontra eco nos números: só no primeiro semestre de 2025, as exportações chinesas de automóveis para a União Europeia aumentaram 36,2% em volume em relação a 2023, consolidando a China como maior exportador para o bloco, enquanto as vendas de veículos europeus para o mercado chinês caíram quase pela metade no mesmo período. Esse desequilíbrio ilustra como a pressão não se limita a estatísticas agregadas, mas já impacta diretamente setores estratégicos da economia europeia.
Eskelund traça uma ligação direta entre a retração das exportações chinesas para os Estados Unidos e o salto dos embarques para a Europa. “Podemos dizer que há um desvio de comércio, mas não creio que seja toda a história”, afirmou em entrevista à Euronews. De fato, dados confirmam que a China enfrentou uma queda em suas exportações para a América do Norte na primeira metade do ano.
Esse fenômeno, entretanto, não decorre apenas de reorientações estratégicas. Eskelund também aponta para fatores internos: “em muitos setores, há concorrência muito intensa e excesso de capacidade em outros”. E alerta: se as importações chinesas entrarem na Europa com preços artificialmente baixos, os produtores locais sofrerão, sobretudo em um momento de fragilidade no mercado interno europeu.
A Comissão Europeia, contudo, mantém cautela. Perguntado sobre um eventual risco sistêmico, o porta-voz Olof Gill minimizou sinais de alarme: “não vemos provas de que esteja havendo um desvio massivo do comércio”. Esse contraste de interpretações reflete as tensões latentes entre os interesses da indústria – que pressiona por medidas protetivas – e a ortodoxia liberal do comércio, ainda forte nos corredores de Bruxelas.
Um desequilíbrio persistente e crescente
A inquietação de Eskelund é reforçada por números macroscópicos: em 2024, o déficit comercial da UE com a China atingiu € 305,8 bilhões, recorde histórico, e praticamente 3% acima do valor de 2023. A persistência desse padrão alimenta a narrativa de que a China atua não só como fornecedor, mas como concorrente estratégico de alta intensidade tecnológica.
Na indústria automotiva, o quadro se mostra ainda mais preocupante. Segundo a associação europeia ACEA, enquanto as vendas globais de carros cresceram 5% no primeiro semestre de 2025, puxadas pela China com +12%, o mercado europeu registrou queda de 1,9%. Também na Alemanha, o déficit comercial com a China saltou 142,8% nos primeiros oito meses de 2025 em relação ao ano anterior.
Pesquisas acadêmicas corroboram esse processo de dependência. Um estudo recente revela que a UE tem aumentado a dependência de fornecedores extra-bloco, especialmente chineses, em componentes críticos como baterias de íons de lítio. Essa exposição fragiliza o esforço europeu de manter uma cadeia de valor competitiva e autônoma.
As relações entre UE e China há muito caminham em terreno ambíguo: cooperação, concorrência e rivalidade sistêmica se alternam em discursos e políticas. Na cúpula de julho em Pequim, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, advertiu que o momento era de inflexão: exigiu reequilíbrios imediatos e criticou as restrições chinesas à exportação de sete matérias-primas críticas para a Europa.
Do lado chinês, a retórica manteve intenção diplomática: em encontro recente nos EUA, o primeiro-ministro Li Qiang afirmou que Pequim está comprometida com mercados abertos, apesar da escalada de tensões. Mesmo assim, o panorama segue repleto de armadilhas: atrás de discursos diplomáticos, há crescente pressão dos EUA sobre a UE para adotar postura mais dura contra a China — inclusive via sanções extraterritoriais.
Na retaliação, a China não fica atrás: recentemente, impôs tarifas antidumping preliminares de até 62,4% sobre importações de carne suína europeia, diretamente em resposta a medidas protecionistas ocidentais. Essa iniciativa é interpretada como um sinal de que Pequim está disposta a usar instrumentos econômicos como arma de chantagem comercial.
Estratégia europeia: entre resistência, autonomia e realismo
Para enfrentar essa tempestade comercial, Bruxelas se vê diante de várias frentes:
- Política industrial e inovação estratégica – reforçar a autonomia em tecnologias críticas, como baterias e semicondutores.
- Instrumentos de regulação e defesa comercial – aplicar tarifas antidumping e subsídios seletivos, calibrando a reação para evitar represálias excessivas.
- Diversificação de cadeias e fornecedores – adotar planos B e C, buscando alternativas na Ásia, América Latina e África.
- Negociação diplomática – manter canais abertos, evitando uma escalada que não interessa a nenhum dos lados.
A Europa está sendo convocada a decidir entre dois caminhos: manter-se como ator passivo, deixando-se pressionar pelas marés globais, ou agir com autonomia consistente para garantir espaço de manobra estratégico. O alerta de Eskelund não é apenas de ordem empresarial. É um aviso de que a guerra por mercados, tecnologia e poder está se deslocando para o solo europeu. A única certeza no momento é a incerteza.