
No coração de Lisboa, um tabuleiro gigante de Banco Imobiliário surgiu em plena praça do Rossio. Criado pelo artista português Bordalo II, o protesto visual foi mais do que uma instalação artística: foi um grito contra a mercantilização da habitação no país. Casas como peças de jogo, prédios à venda como propriedades fictícias e aluguéis simbolizados por notas fictícias deixaram claro o recado — em Portugal, morar virou um privilégio cada vez mais inacessível.
A obra, que foi removida pelas autoridades após apenas algumas horas, escancarou a insatisfação popular diante de uma crise habitacional que se agrava ano após ano. A ação ganhou repercussão internacional, não apenas por sua criatividade, mas por representar com exatidão o que dados oficiais e analistas vêm alertando: o sistema habitacional português virou um jogo onde quem perde é a maioria da população.

Fonte: Instagram Bordalo II
A crise por trás do protesto
Lisboa e Porto lideram o aumento dos preços de venda e aluguel na Europa. Desde 2015, os valores dos imóveis na capital subiram cerca de 186% e os aluguéis avançaram 94%, segundo a consultoria Confidencial Imobiliário. A disparada foi impulsionada por fatores como o aumento da demanda externa — especialmente com os programas de vistos gold e o crescimento do turismo —, além da falta de políticas públicas de habitação acessível e da especulação imobiliária.
Com salários que não acompanham o ritmo dos preços e uma oferta extremamente limitada, famílias de classe média foram forçadas a se afastar dos centros urbanos. Em Lisboa, alugar um apartamento de um quarto pode consumir até 70% da renda média líquida mensal de um trabalhador. O fenômeno, que tem rosto e endereço, afetou principalmente jovens, aposentados, famílias monoparentais e imigrantes.
A crise tornou-se tema central do debate político às vésperas das eleições legislativas marcadas para 18 de maio. Ao menos 60 propostas distintas sobre habitação foram apresentadas pelos principais partidos — um indicativo da gravidade do tema e da disputa por respostas críveis.
O governo português já havia anunciado, no fim de 2023, um plano de construção de 59 mil habitações até 2030 com aporte de € 4 bilhões, mas a entrega dos imóveis avança lentamente. A recente autorização para construção de casas em terrenos rurais dividiu opiniões: para alguns, é uma resposta urgente à falta de imóveis; para outros, um retrocesso ambiental.
Partidos de esquerda defendem congelamento de aluguéis, restrições à compra por estrangeiros e ampliação de habitação social. À direita, prevalecem propostas de incentivos fiscais e desregulamentação para atrair investidores e acelerar a oferta habitacional. A promessa do Partido Socialista de entregar 10 mil novas casas ainda em 2025 é vista como uma tentativa de resposta rápida, mas enfrenta ceticismo diante do histórico de morosidade nas políticas públicas do setor.
A dimensão social e simbólica da crise habitacional portuguesa transcendeu fronteiras — inspirou inclusive uma série brasileira e mobilizou organizações internacionais como a Amnistia Internacional, que denuncia o problema como uma violação do direito à moradia. Para além da Europa, Lisboa tornou-se exemplo de como políticas mal calibradas, somadas a pressões de mercado e ausência de visão de longo prazo, podem comprometer a coesão urbana e social de um país.