
Embora o debate público sobre o acordo entre União Europeia e Mercosul costume girar em torno de temas como sustentabilidade e agronegócio, um dos painéis mais reveladores do seminário European Day, realizado em Bruxelas, trouxe à tona um aspecto menos discutido, mas igualmente estratégico: as compras públicas, ou government procurement.
Mediado por Ciro Dias Reis, CEO da Imagem Corporativa, o painel reuniu especialistas com visões complementares sobre os impactos do acordo para os mercados de licitações públicas. Participaram John Bazil, representante da Comissão Europeia para assuntos regionais para América Latina e Projeto Green Europe; Welber Barral, especialista em comércio internacional e sócio-fundador da Consultoria BMJ Relações Governamentais; e Oscar Guinea, economista sênior do European Center for International Political Economy (ECIPE), em Bruxelas.
John Bazil abriu a conversa destacando o potencial transformador das compras públicas nos países do Mercosul. Segundo ele, o setor representa cerca de 14% do PIB da União Europeia — um montante estimado em 2 trilhões de euros (aproximadamente) — e cerca de 300 bilhões de dólares nos países do bloco sul-americano. “São cifras astronômicas e, sobretudo, dinheiro público. Por isso, é fundamental garantir que essas compras sejam feitas com transparência e eficiência”, afirmou.
Ele também ressaltou que, embora o tema seja muitas vezes considerado técnico, o capítulo de compras governamentais do acordo representa um dos pilares centrais das negociações, com potencial de ampliar o acesso a mercados para empresas europeias e latino-americanas, promovendo maior competitividade e reduzindo espaços para corrupção.
Para Albert Barral, o acordo é um divisor de águas, especialmente ao incluir um capítulo inédito sobre compras públicas para os países do Mercosul — nenhum deles é signatário do Acordo de Compras Governamentais da OMC. “O tratado traz segurança jurídica e reduz custos de transação para empresas que queiram participar de licitações no Brasil e na Europa”, explicou.
Barral destacou ainda que o setor da saúde é um dos mais relevantes no caso brasileiro, já que o SUS é um dos maiores compradores de produtos farmacêuticos da União Europeia. “O acordo reconhece exceções para setores sensíveis, mas cria uma base legal sólida para ampliar a participação de fornecedores estrangeiros com regras claras”, disse.
Oscar Guinea trouxe uma perspectiva geopolítica ao lembrar que empresas europeias têm enfrentado crescente concorrência de fornecedores chineses nos contratos públicos da região. “O acordo com o Mercosul garante acesso mais justo ao mercado e fortalece a presença europeia, que tem perdido espaço nos últimos anos”, avaliou.
Guinea também ponderou que, embora o potencial do mercado seja enorme, ainda existem barreiras naturais à participação de estrangeiros. “Há um viés doméstico nos processos de licitação, tanto no Brasil quanto na Europa. No entanto, o acordo estabelece princípios de não discriminação e transparência que ajudam a nivelar o jogo”, completou.
Em um momento de reflexão mais ampla, os palestrantes também debateram o uso das compras públicas como instrumento de políticas públicas — especialmente para inovação, sustentabilidade e desenvolvimento industrial. Todos concordaram que, embora seja necessário buscar o melhor valor pelo dinheiro, é legítimo utilizar as licitações como ferramenta estratégica para impulsionar setores-chave.
“A margem de preferência para fornecedores locais, prevista no acordo, permite que os governos estimulem empresas nacionais sem perder o foco na eficiência e na transparência”, comentou Bazil. Para Guinea, “é um equilíbrio delicado, mas possível — e essencial para a integração econômica entre as regiões”.
O painel evidenciou que o capítulo de compras governamentais do acordo União Europeia–Mercosul, embora pouco explorado no debate público, tem grande potencial de transformar o ambiente de negócios, ampliar a concorrência e fortalecer a cooperação entre os blocos, com impactos diretos na eficiência do gasto público e no desenvolvimento econômico da região.